Conto | Como Sair do seu Corpo 2: Prisão Além do Véu

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• Por Alisson Santos 


O silêncio da noite pesava como chumbo sobre meus ombros. Cada sombra na parede do meu quarto parecia se esticar e me observar, cúmplices silenciosos do terror que agora me acompanhava. Eu sabia o que tinha que fazer, mas meu corpo tremia só de pensar. 

Fazia três dias desde que Geovane foi puxado para aquela água negra. Três dias desde que perdi meu amigo para algo que eu não conseguia entender. Eu tentava dormir, tentava alcançar aquele estado novamente, mas algo me impedia. O medo? Talvez. Mas eu sentia que havia algo mais. Algo que agora me observava do outro lado.

Na quarta noite, exausta e desesperada, tomei uma decisão. Se meu corpo não me deixava partir naturalmente, eu teria que forçar minha saída. Passei o dia inteiro estudando técnicas, relendo o capítulo do livro de Grovewood, tentando encontrar uma solução. Foi então que encontrei uma passagem que antes havia ignorado:  

"Se a partida se tornar difícil, é porque alguém está segurando as rédeas da sua mente. Nesse caso, você precisará lutar. A resistência pode se manifestar como um sonho, uma presença, ou uma sombra à sua volta. Enfrente-a. Olhe nos olhos dela. Só assim você poderá sair."

A ideia de que algo estivesse me prendendo causou um calafrio profundo, mas eu não podia hesitar. Eu precisava trazer Geovane de volta.  

Naquela noite, preparei-me como nunca antes. Inclinei a poltrona na posição exata, acendi uma vela ao lado como um pequeno ponto de referência no mundo real, e fechei os olhos. Concentrei-me em cada detalhe do processo. O peso do meu corpo afundando no tecido da poltrona. A respiração diminuindo. O torpor se instalando nos membros. E então… a paralisia. 

Dessa vez, ela veio diferente. Não como uma imobilização passiva, mas como se algo me segurasse ativamente, como mãos invisíveis pressionando meus ombros. A dor na cabeça veio como um golpe, uma fisgada ardente que quase me fez desistir. Mas eu me lembrei das palavras do livro.  

“Olhe nos olhos dela.”  

Mas como olhar para algo que não se vê?  

A resposta veio como um instinto primitivo. Eu forcei minha mente a visualizar quem - ou o que - estava me segurando. No mesmo instante, um rosto emergiu da escuridão. Não era humano. Os olhos eram vazios, bocas sobrepostas se abriam e se fechavam como se murmurassem algo incompreensível. Não era um ser. Era um aglomerado de rostos, todos mesclados, tentando se formar em algo reconhecível, mas falhando miseravelmente.  

Eles sussurravam.  

"Não vá."
"Ele não pode voltar."
"Você não pertence aqui."

Mas eu não deixaria aquilo me deter. Não dessa vez.  

Com uma força que eu nem sabia que possuía, empurrei aquela presença para longe. A dor na minha cabeça explodiu como uma onda de eletricidade, e, num piscar de olhos, eu caí - ou melhor, fui sugada para fora.  

A casa estava como sempre: congelada no tempo. Geovane não estava lá.  

Corri até a lagoa. Ela parecia mais escura do que antes. Como se esperasse por mim.  

Ajoelhei-me na borda, hesitante.  

- Geovane… você está aí? — minha voz ecoou de uma maneira que nunca tinha acontecido antes.  

Então, a superfície se rompeu.  

Primeiro, veio um braço. Mas não era como antes. Não era pálido, translúcido. Era… apodrecido. Inchado. Como se Geovane tivesse estado ali por meses.  

- Me puxa… - a voz dele veio rouca, entrecortada, como se tivesse esquecido como falar.  

O pavor me dominou, mas segurei sua mão. O toque era diferente. Frio demais, firme demais.  

Quando comecei a puxá-lo, algo emergiu atrás dele. Algo grande. Algo que não deveria existir.  

Uma silhueta negra, humanoide, mas sem feições definidas. Longa, esticada, como se fosse feita de sombras líquidas. Seus braços eram longos demais, e as mãos - ah, as mãos! - eram as mesmas que haviam puxado Geovane antes.  

Ela se inclinou sobre ele, os dedos cravando-se nos ombros de Geovane.  

- Não pertence mais a você.  

O sussurro veio direto à minha mente, e eu soube, naquele momento, que não estava apenas puxando meu amigo. Eu estava disputando por ele.  

Lutei. Segurei firme. Gritei. Mas quanto mais eu puxava, mais a coisa puxava de volta. E então, Geovane olhou para mim. Seu rosto não era mais o mesmo. Algo nele havia mudado.  

- Deixa eu ficar… - ele murmurou.  

A água começou a puxá-lo para baixo novamente, e, no último segundo, Geovane sorriu. Não um sorriso de alívio. Mas um sorriso vazio. Um sorriso que não era dele.  

Foi então que entendi.  

A coisa já o havia tomado.  

Acordei gritando, suando frio. Minha sala estava normal. A vela ainda queimava, iluminando fracamente o ambiente. Mas algo estava diferente.  

No chão, ao lado da poltrona vazia onde Geovane costumava dormir, havia pegadas molhadas.  

As pegadas molhadas levavam até a porta do meu quarto. Meu coração martelava no peito, uma batida descompassada entre o medo e a incredulidade. Aquilo não podia ser real. Não podia.  

Mas era.  

Eu me levantei devagar, sentindo o chão frio sob meus pés. A vela ao lado da poltrona tremulava violentamente, como se algo invisível tivesse acabado de passar por ali. O silêncio da casa era ensurdecedor.  

Dei um passo hesitante em direção às pegadas. Então, um segundo. O rastro terminava diante da porta entreaberta do meu quarto. Um frio cortante percorreu minha espinha.  

Algo estava ali dentro.  

Minha mão tremia quando toquei a madeira da porta. Com um leve empurrão, ela se abriu, revelando a escuridão densa do meu quarto. A luz do corredor mal penetrava no breu, como se houvesse algo na própria escuridão que a devorasse.  

E então, eu vi.  

Geovane estava de pé ao lado da minha cama. Ou, pelo menos, o que um dia foi Geovane.  

Seu corpo ainda pingava aquela água negra e viscosa, os olhos eram poços vazios refletindo um brilho sombrio. Seu sorriso estava errado. Aberto demais. Esticado além do que deveria ser possível.  

- Eu voltei - ele sussurrou.  

Minha garganta se fechou. O instinto gritava para eu correr, mas minhas pernas estavam enraizadas no chão.  

Geovane inclinou a cabeça para o lado, como se estudasse minha reação. Então, deu um passo à frente. O som de seus pés molhados contra o chão fez meu estômago revirar.  

- Você tentou me trazer de volta… e conseguiu. - Sua voz era arrastada, como se várias outras falassem ao mesmo tempo. - Mas não só a mim.  

Atrás dele, a sombra se contorceu. Longos dedos emergiram do vazio, se esticando, tocando as paredes, os móveis. Um murmúrio ecoou pelo quarto, baixo, quase imperceptível, mas impossível de ignorar.  

"Não pertence mais a você."

Um zumbido agudo tomou minha mente. O quarto girou. Minha visão escureceu por um instante, e então…  

Eu não estava mais ali.  

O chão sob meus pés não era mais madeira, mas lama fria e úmida. A névoa densa me envolvia, pesada como uma mortalha. Estava de volta à lagoa. Mas algo estava errado.  

A água fervia como piche derretido, borbulhando com formas distorcidas que tentavam emergir. Mãos, rostos, bocas abertas em gritos silenciosos. E ao meu lado, Geovane, ou o que restava dele, se ajoelhava à beira da água, contemplando seu reflexo.  

- Você não devia ter me chamado. - Sua voz agora tinha um tom de lamento.  

- O que está acontecendo? - perguntei, minha voz falhando.  

Ele não respondeu. Apenas ergueu a mão e apontou para a água.  

Eu olhei.  

O reflexo não era o meu.  

Era ela. A coisa da escuridão. Seu rosto composto por bocas murmurantes, seus olhos vazios como o próprio esquecimento. Mas agora… ela sorria.  

Porque eu estava do outro lado.  

Eu tentei gritar, mas não havia som. Minhas mãos tocaram a superfície da água e se chocaram contra algo sólido. Como se um vidro me separasse do mundo real.  

No outro lado, na casa, na poltrona, no meu corpo… alguém - ou algo - abriu os olhos.  

E sorriu.  

Porque agora, eu era apenas um reflexo.  

E ela…  

Ela estava no controle.

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