Conto | O Quadro da Sombra

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos 

Clara aceitara o trabalho por necessidade. A vida em São Paulo fora dura demais; empregos curtos, dívidas, noites insones. Quando apareceu a vaga para cuidar de uma criança em uma casa de campo, aceitou sem pensar muito. O casal Maxwell queria alguém apenas no período noturno — “Elias é tranquilo, gosta de desenhar antes de dormir, você mal vai notar a presença dele”, dissera a mãe, sorrindo com um ar cansado.

A casa era imensa, de madeira escura, cercada por um bosque que se espalhava até perder de vista. Clara notou de imediato o silêncio quase artificial, como se o lugar tivesse sido construído para sufocar qualquer som. Nem grilos se arriscavam ali.

Na primeira noite, Elias revelou-se uma criança dócil, mas perturbadoramente séria para os seus oito anos. Sentava-se diante da escrivaninha, o abajur iluminando a pele clara e os olhos fundos. Segurava o lápis como quem segura uma arma. Passava horas desenhando sem dizer palavra.

Clara, de início, achou até fofo. Os primeiros rabiscos eram simples, uma bicicleta, um cachorro, árvores mal proporcionadas. Mas havia algo inquietante na maneira como Elias observava o papel, como se esperasse que algo surgisse dele.

Na segunda noite, porém, os desenhos mudaram. Elias mostrou uma árvore solitária e atrás dela, uma mancha preta em forma de homem. Não tinha rosto, mas braços longos que se estendiam como tentáculos.

— Que coisa estranha, Elias… de onde tirou isso? — Clara perguntou, rindo nervosa.
O menino não levantou os olhos.
— Eu não tirei. Ele fica me olhando da janela.

Clara virou-se rapidamente. A janela estava aberta, revelando o bosque mergulhado na escuridão. As árvores pareciam mais próximas do que no dia anterior, inclinadas para dentro do quarto. Um vento gélido atravessou sua espinha. Ela fechou as cortinas e não comentou mais nada.

Com o passar dos dias, o ambiente da casa se tornava sufocante. Clara percebia que o ar parecia mais denso à noite, como se respirasse poeira invisível. As paredes estalavam em intervalos regulares, como passos calculados. Às 2h47 da madrugada, sempre no mesmo minuto, o pêndulo do relógio da sala parava.

Elias desenhava cada vez mais compulsivamente. Seus olhos estavam vermelhos, mas ele não descansava. Quando Clara sugeriu que fosse dormir mais cedo, ele gritou num tom de desespero que não parecia vir de uma criança.
— Eu não posso parar! Se eu parar, ele entra!

Os cadernos se multiplicavam. Cada página era pior que a anterior; corpos com olhos arrancados, casas em chamas, pessoas presas em árvores. E a sombra sempre presente, mais definida a cada traço, aproximando-se como se atravessasse o papel.

Uma madrugada, Clara encontrou um desenho que a fez tremer. Era o quarto de Elias. O menino na cama. E ao lado dele, sentada numa cadeira, uma mulher de cabelos longos, mãos trêmulas e olhos arregalados. Era ela.

Deixou o papel cair, o coração disparado. Quando se virou para a janela, percebeu a cortina balançando sozinha. No reflexo do vidro, viu uma silhueta que não lhe pertencia; alta, braços desproporcionais, cabeça inclinada para o quarto. A escuridão escorria da figura como tinta fresca.

Clara tentou convencer a si mesma de que estava cansada, mas a sensação de ser observada tornou-se constante. Nos corredores, ela percebia vultos que desapareciam quando piscava. O ranger da madeira sob pés invisíveis seguia seus passos. O cheiro da casa mudara, adquirindo algo metálico, como sangue oxidado.

Elias, por sua vez, já não era o mesmo. O menino murmurava palavras que Clara não entendia enquanto desenhava, como se estivesse copiando de uma voz que apenas ele ouvia.
— Ele fala comigo quando eu durmo. — confidenciou, num sussurro, certa noite. — Disse que está cansado de esperar.

Foi na sexta noite que tudo ruiu. Elias desenhava com uma pressa enlouquecida, os traços arranhando o papel até rasgá-lo. Suas mãos tremiam, mas ele não parava. Clara aproximou-se, tomada pelo pânico. No desenho, via-se novamente o quarto. A cama. A escrivaninha. Elias desenhando. E atrás dele, algo se erguia — uma sombra que já não cabia na folha.

— Elias, chega! — Clara tentou tirar o caderno.

O menino gritou, mas não como uma criança. O som parecia vir de várias bocas ao mesmo tempo. A lâmpada estourou, mergulhando o quarto na escuridão. O vidro se espalhou pelo chão com o som de ossos esmagados.

O ar ficou gelado, quase sólido. Clara sentiu dificuldade para respirar. Então veio o som; um arrastar lento, viscoso, como carne úmida roçando contra a madeira. Seguido de uma respiração funda, sem pulmões, mas tão próxima que o calor se espalhou pela sua nuca.

Ela não queria virar-se, mas não conseguiu evitar. A cortina balançava sozinha, e do vão da janela escorria uma mancha preta, que se estendia pelo chão, subindo pelas paredes. Não era sombra. Era matéria. Matéria escura, viva, que se moldava a braços, a dedos longos e pontiagudos.

Elias soluçava, enterrando o lápis no papel, como se cada rabisco fosse uma barreira contra a coisa.
— Ele não quer mais ficar no desenho… — o menino chorava. — Ele quer você.

A escuridão avançou até tocar o ombro de Clara. Frio. Gelado como a água de um rio morto. Ela gritou, mas o som foi engolido pela própria escuridão.

E então, tudo se apagou.

Comentários

  1. Stephanie Maria13/9/25

    Belíssima construção de tensão, fiquei apreensiva.

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