(MOSTRA SP) Crítica | Novembro - É uma lembrança dolorosa de que o passado, quando não é enfrentado, continua respirando entre as paredes do presente.

Divulgação | Vulcana Cinema

• Por Alisson Santos 

Em um panorama cinematográfico cada vez mais pautado por fórmulas e narrativas de fácil digestão, Novembro, dirigido pelo colombiano Tomás Corredor, surge como uma obra de ruptura. Trata-se de um filme que não apenas narra um evento histórico, mas o reimagina como experiência sensorial, um mergulho no trauma e na memória coletiva da América Latina. Baseado na trágica tomada do Palácio da Justiça em Bogotá, em 1985, o longa transforma o episódio em um estudo sobre o colapso — não apenas das instituições, mas do próprio ser humano diante do caos.

Corredor não busca o caminho seguro do cinema histórico convencional. Sua narrativa abandona a cronologia e se organiza como um mosaico de lembranças quebradas, ruídos, imagens de arquivo e ficção dramática. O espectador nunca sabe ao certo o que é real, o que é reconstrução, e o que é apenas o delírio de uma memória prestes a desmoronar. Em um banheiro do Palácio, um grupo de pessoas — juízes, civis, guerrilheiros — permanece enclausurado por mais de vinte e sete horas enquanto, do lado de fora, o mundo arde. O filme transforma esse espaço mínimo em um espelho do país inteiro; uma Colômbia confinada, ferida, sufocada por suas próprias contradições.

O grande mérito de Novembro é seu domínio da claustrofobia. A câmera invade os rostos, captura o suor, a respiração e o medo. As paredes úmidas parecem se fechar, e o som de tiros ao longe se mistura ao batimento cardíaco dos personagens. O espectador sente o peso da falta de ar, o cheiro da morte iminente. Corredor filma o desespero não como espetáculo, mas como estado físico. O horror não é mostrado, é sentido. E, nesse ponto, o diretor revela uma maturidade impressionante: em vez de procurar respostas, ele prefere escavar o abismo das perguntas.

A estética do filme é uma extensão desse desconforto. Tons frios e metálicos dominam a fotografia, interrompidos por lampejos vermelhos de fogo e sangue. A montagem é fragmentada, construída a partir de choques visuais e cortes abruptos, como se o próprio tecido da realidade estivesse se rasgando. Há momentos em que o filme parece se dissolver em pura textura — o som da respiração se mistura às gravações de rádio da época, os diálogos se transformam em murmúrios indistintos, e a fronteira entre passado e presente desaparece. Tudo é ruína, e o cinema torna-se o último abrigo possível.

Divulgação | Vulcana Cinema

Mas Novembro não é apenas um retrato do trauma colombiano; é um filme sobre o modo como a América Latina se relaciona com o esquecimento. Corredor compreende que as ditaduras, as guerras civis e os massacres que atravessam o continente não pertencem ao passado — eles continuam a se repetir, como ecos nas frestas da história. O filme faz da memória um campo de batalha, e do silêncio, uma denúncia. As imagens de arquivo surgem e desaparecem como lembranças reprimidas, e cada ausência se torna um grito. O que não se mostra é o que mais dói.

Essa densidade política, no entanto, vem acompanhada de uma linguagem radical. Novembro é um filme que exige paciência, abertura e disposição para o desconforto. Sua narrativa rarefeita e seu ritmo irregular podem afastar espectadores acostumados à fluidez narrativa, mas é justamente nessa resistência que reside sua potência. O espectador, assim como os personagens, precisa enfrentar o caos para atravessar o filme. O cinema de Corredor é o cinema do não dito, do que resta depois do desastre. Ele compreende que há tragédias que não podem ser representadas — apenas evocadas. O Palácio da Justiça torna-se metáfora universal; um espaço onde o poder e a fé desmoronam, e o ser humano precisa encarar o vazio.

Ao final, quando a fumaça cobre o céu e o som dos tiros cessa, resta apenas o silêncio. Um silêncio que não é paz, mas lembrança. Novembro não consola, não resolve, não ensina. Ele confronta. E nesse gesto, torna-se uma das obras mais vigorosas e necessárias do cinema latino-americano recente. É um filme sobre o irrepresentável, sobre a impossibilidade de esquecer e sobre a urgência de olhar novamente — mesmo quando o que se vê é insuportável. Um dos grandes filmes de 2025 — e uma lembrança dolorosa de que o passado, quando não é enfrentado, continua respirando entre as paredes do presente.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 18, 19, 27 e 29 de outubro.

Avaliação - 9/10

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