Crítica | O Sítio - Schnicer mostra que o verdadeiro horror não está no sangue, mas na tentativa de viver normalmente após um ato imperdoável.

Divulgação | Zeta Filmes

• Por Alisson Santos 

Dirigido pela argentina Silvina Schnicer, O Sítio é um filme que se recusa a oferecer respostas fáceis. É uma obra que se constrói nas entrelinhas, no silêncio, nas pausas carregadas de tensão — e justamente por isso, exige um espectador atento, paciente e disposto a mergulhar nas zonas sombrias da vida doméstica e da infância. Longe de ser um drama tradicional, a produção argentina se aproxima de um terror psicológico ambiental, uma história de culpa, negação e inquietação social que nunca explode, mas pulsa incessantemente debaixo da pele.

A trama acompanha Rudi e Silvia, um casal que decide passar as férias de inverno com os três filhos — Martín, Federico e Silvina — em uma antiga casa de campo da família, o tal "sítio" que dá nome ao filme. O que deveria ser um refúgio tranquilo logo se transforma em algo estranho; há um cheiro forte de mofo e morte, sinais de invasão e um velho caseiro que parece mais dono do lugar do que eles próprios.

O desconforto inicial se intensifica quando as crianças, deixadas livres demais, se envolvem em um acontecimento trágico. Não sabemos exatamente o que ocorreu — Schnicer evita mostrar o fato central —, mas é o suficiente para que o clima da casa se contamine de culpa e silêncio. A partir daí, O Sítio se torna menos sobre o que aconteceu e mais sobre como essa família lida com o trauma, a repressão e o medo de que algo podre venha à tona.

Silvina Schnicer cria uma atmosfera opressiva sem recorrer a sustos ou violência explícita. A fotografia de Iván Gierasinchuk privilegia planos fixos, luz natural e uma paleta fria, que transforma o sítio em um espaço de ameaça disfarçada. O campo argentino, com seus tons cinzentos e sons abafados, funciona como uma extensão do mal-estar interno dos personagens.

Os silêncios e os planos demorados — às vezes incômodos — fazem parte do método; o filme não quer nos contar algo, quer nos fazer sentir o desconforto de quem presencia algo que não pode ser dito. Cada detalhe — o cheiro nauseante, o fogo que escapa do controle, a sujeira que não sai — é um símbolo de uma podridão emocional que ninguém quer encarar.

Um dos grandes acertos do filme é o olhar sobre a infância. Schnicer filma os filhos do casal não como figuras inocentes, mas como vetores de um impulso inconsciente e perigoso. A liberdade das crianças — correr pelo mato, brincar perto do fogo, explorar ruínas — adquire uma ambiguidade assustadora.

A diretora faz o espectador revisitar a infância não como um tempo puro, mas como um espaço de experimentação moral; a curiosidade que ultrapassa limites, a crueldade que nasce do tédio, a incapacidade de compreender a gravidade de um ato. O olhar infantil, que domina parte da narrativa, desloca o espectador para um ponto de vista instável, imprevisível — e é justamente ali que mora o terror.

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o sítio é mais do que cenário; é um símbolo de uma Argentina partida, de uma classe média que busca escapar da cidade para se refugiar em um campo que já não lhe pertence. O fogo, recorrente na trama, encarna tanto o fascínio infantil quanto a destruição inevitável. É o elemento purificador e, ao mesmo tempo, o que devora.

O casal de protagonistas tenta apagar os rastros do acontecimento, limpar, enterrar, esquecer. Mas o que foi queimado continua exalando — literalmente — um cheiro de decomposição. O fogo, como o trauma, não cessa ao ser controlado; apenas muda de forma, infiltrando-se nos gestos e olhares dos personagens.

O ritmo é deliberadamente lento, quase hipnótico. Cada plano parece calculado para gerar desconforto. É um cinema de sugestão, não de explicação. Quem espera um clímax ou uma reviravolta sairá frustrado; quem se permite observar o que está sendo soterrado encontrará um filme profundamente perturbador.

Nem tudo, porém, funciona de forma plena. O filme paga o preço da sua ambiguidade; o ritmo pausado, por vezes excessivo, pode afastar espectadores menos pacientes. Os adultos — especialmente Rudi, o pai — são figuras mais simbólicas do que psicológicas. Servem ao discurso, mas raramente se revelam por dentro. O contexto social insinuado (a relação entre patrões e empregados, o medo da invasão) poderia ter sido explorado com mais contundência, sem diluir a força íntima da história. Ainda assim, essas limitações parecem coerentes com a proposta da diretora; retratar uma sociedade que vive de aparências e silêncios, onde todos preferem olhar para o lado do que admitir o que fizeram — ou deixaram acontecer.

Em sua camada mais profunda, O Sítio fala sobre culpa, negação e classe. A família burguesa tenta preservar a fachada enquanto o que apodrece debaixo da terra ameaça emergir. A narrativa, então, vira uma parábola; quanto mais os personagens tentam limpar e esconder, mais o cheiro da verdade se espalha.

O título, portanto, é duplo. O Sítio é tanto o nome do lugar quanto a metáfora de um corpo social que, sob a aparência de estabilidade, carrega algo morto por dentro. O filme questiona o mito da família ideal, da infância feliz e da propriedade privada como símbolo de sucesso — temas que ecoam com força na Argentina contemporânea.

O filme estreia em 13 de novembro nos cinemas.

Avaliação - 7/10

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