Conto | O Fruto da Carne

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos 

Antes do verbo, antes da queda, havia o ruído. Sob as raízes da Árvore da Vida, raízes que se entrelaçavam como nervuras douradas sobre a terra perfeita, havia uma vibração esquecida, uma pulsação silenciosa como o suspiro de algo que jamais deveria ter existido. Os anjos a sentiam. Os animais a evitavam. O próprio Criador desviava o olhar sempre que passava por ali. O Éden era um jardim suspenso sobre o esquecimento.

Eva sentia esse som. Não com os ouvidos, mas com a pele. Era como um segundo coração batendo sob os pés, um tambor ancestral que nenhuma linguagem nomeava. Até que um dia, ao caminhar sozinha, como fazia quando sonhava em silêncio, ela o viu.

O fruto.

Não brilhava. Não exalava aroma. Era opaco, quase púrpura, com uma pele enrugada como a de um velho recém-acordado de um pesadelo milenar. Estava preso a um galho que não nascia de nenhuma árvore conhecida. Nem da Árvore da Vida, nem da Árvore do Conhecimento. Era uma excrescência, um apêndice do mundo, algo que simplesmente... não devia estar ali.

Ela não o tocou por fome, nem por provocação. Tocou porque o fruto parecia triste. E esmagou-o contra a terra.

O sumo não era vermelho, nem dourado, mas negro como poço profundo. Quando tocou o chão, o solo gemeu. Um som abafado, como se a terra gritasse com a boca cheia. Rachaduras se abriram. E do barro molhado, começaram a emergir criaturas.

Não eram homens. Não eram animais. Não eram anjos.

Eram formas. Protótipos. Os primeiros rascunhos da criação - tentativas falhas, esquecidas, imperfeitas. Torsos com braços demais. Cabeças que não sustentavam olhos. Rostos que não terminavam em boca. Eram como estátuas inacabadas que, ainda assim, se moviam. E o mais terrível; cada uma delas carregava traços de Adão e Eva. Como se Deus os tivesse ensaiado mil vezes antes de alcançar a versão que funcionava.

Esses seres não falavam. Apenas caminhavam, vacilantes, famintos, com os olhos ocos como poços secos. Não procuravam carne. Procuravam lugar. Queriam pertencer. Se arrastavam atrás dos vivos como sombras abandonadas. Quando tocavam Eva, choravam barro.

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Adão os temia. Eva os escutava. Os animais fugiam. E o Éden, antes um coro de harmonia, agora era um lamento sem melodia.

Foi então que ele apareceu; Ara’el.

Um anjo. Não como Lúcifer, que caiu por orgulho. Mas como um guardião que nunca soube se devia proteger ou questionar. Ara’el fora encarregado de registrar os fracassos da Criação - cada forma que não deu certo, cada alma que não incendiou, cada sopro abortado antes de se tornar espírito. Ele andava com um pergaminho de sombra, escrito com pena arrancada da própria asa. Ara’el não foi banido. Ele simplesmente não coube mais na lógica da luz.

Ao ver os seres emergirem do solo, não os enfrentou. Inclinou-se.

- O Criador moldou a perfeição sobre o altar da rejeição - sussurrou. - O paraíso não é o início de tudo. É o teto de um porão cheio de esquecimentos.

Eva então compreendeu. A Árvore do Conhecimento... não havia sido plantada. Nascera sozinha. Era a única árvore que brotara da dúvida. Alimentada pelas falhas que Deus tentou enterrar, pelas possibilidades que ele recusou reconhecer.

O fruto negro era um selo. Não um dom. Era a última tentativa do Criador de esquecer o que errara. Um útero de negação. E ela o quebrara.

Agora, os esquecidos andavam.

Eles não queriam matar. Queriam existir. Mas como não sabiam como ser, tentavam fundir-se com os vivos. Quando percebiam que não eram aceitos, que continuavam invisíveis, mordiam. Como crianças que, ao não serem compreendidas, destroem o brinquedo que não sabem nomear. Era um apetite por existência.

Um deles, feminino, sem olhos, com a pele feita de raízes, encostou-se ao ventre de Eva. Tentou aninhar-se ali, como se buscasse nascer outra vez, através dela. Adão arrancou a criatura. A esmagou com uma pedra. O crânio afundou com um som úmido, e o Éden testemunhou o primeiro assassinato. O sangue se misturou à seiva, e no dia seguinte, os lírios nasceram vermelhos.

Foi então que Deus falou.

Não com trovões. Não com fogo. Mas com a tristeza daquilo que já sabe que falhou.

- A Queda não começou com a escolha. Começou quando me recusei a amar aquilo que criei e considerei erro.

Deus não os expulsou.

Os conduziu para fora.

O Éden não era mais lugar de inocência. Não porque pecaram, mas porque viram. Porque sabiam. E o saber exige dor. Exige perda.

Ara’el os acompanhou. Carregava os nomes dos esquecidos no pergaminho. Cada um deles, agora livre. Nenhum deles, completo.

Dizem que, em certos lugares do mundo, cresce uma árvore com um único fruto negro. Ninguém sabe ao certo de onde veio. Mas aqueles que o veem dizem que ele parece... pulsar. Esperar.

Talvez o apetite desses seres ainda exista - não na carne, mas em nós. No desejo de sermos vistos. De sermos lembrados. De não sermos... rascunhos.

Porque talvez a verdadeira maldição não seja a morte.

Mas nunca ter existido o suficiente para morrer.

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