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• Por Alisson Santos
Ele acendia sempre o mesmo cigarro, na mesma hora. O ponteiro do relógio marcava onze e vinte, e com o estalar do isqueiro a sala parecia se contrair. Não era superstição; era rotina. Era nesse instante que a presença surgia. Não pela porta, não pela janela — mas na cadeira em frente à sua. Um espaço vazio que, de repente, ganhava densidade.
— Você demorou — disse a voz.
— Não. Você é que chegou cedo demais — respondeu ele, soprando a fumaça.
Não era sombra, nem vulto. Não tinha forma, mas ocupava espaço. O ar ficava mais pesado, como se umidade se infiltrasse nos ossos. Ele já havia desistido de chamá-la de "sensação". Não; ela era alguém. Uma entidade tão real quanto a fumaça que se dissipava entre eles.
— Trouxe a mesma queixa de ontem? — ironizou a presença.
— Talvez. As contas não param de chegar.
— Contas sempre chegam. O que não chega são as soluções que você nunca cria.
Ele tomou um gole do café frio, tentando se distrair da navalha escondida na frase.
— Você fala como se eu fosse culpado de tudo.
— Você é. A única pessoa que poderia mudar sua vida é a mesma que acende esse cigarro todas as noites.
Silêncio. O cigarro queimava lento, como se a brasa tivesse o mesmo ritmo dos pensamentos dele.
— Não é tão simples — disse, quase em súplica.
— Você gosta de acreditar que não é simples. Porque acreditar no difícil justifica sua imobilidade.
Ele cerrou os olhos. Essa era a tortura; Esse sentimento nunca gritava. Nunca rasgava os ouvidos. Não precisava. Bastava o sussurro venenoso, a lógica invertida, o sarcasmo que desmontava cada desculpa.
— Então o que você quer de mim? — perguntou, num rompante. — Que eu seja perfeito? Que eu resolva tudo?
— Eu quero o que você não consegue dar. Quero que você esteja sempre em dívida comigo. Quero que nunca me satisfaça. Sou fome que não se sacia.
Ele riu sem humor.
— Então você é Deus?
— Sou pior. Deus perdoa. Eu não.
A frase ficou suspensa no ar, mais densa que a fumaça. Ele tragou fundo, até tossir. A tosse o lembrou do corpo, da carne frágil que envelhecia.
— Sabe o que mais me dói? — disse, com a voz embargada. — É pensar que a vida se resume a isso; trabalhar para pagar dívidas, sorrir para cumprir papéis, calar o grito interno.
— Não se resume a isso. — A entidade inclinou-se, invisível, mas presente como uma lâmina contra a pele. — Resume-se a não estar nunca satisfeito com nada do que faz. A vida não é apenas insuficiente. Ela é insuficiente em sua melhor forma.
Ele abaixou os olhos para o cinzeiro, repleto de pontas mal apagadas. Havia uma metáfora ali, mas estava cansado demais para persegui-la.
— Você já pensou em me deixar em paz? — perguntou, quase infantil.
A presença riu. Não com crueldade, mas com uma familiaridade íntima, como quem ri de um velho amigo que faz sempre a mesma pergunta.
— Eu não vim até você. Foi você que me chamou. No primeiro dia em que se perguntou se era bom o bastante. No primeiro silêncio em que teve medo de si mesmo. Desde então, eu só atendo ao convite.
Ele fechou os olhos, como se pudesse dormir para expulsá-la. Mas sabia que não funcionava. O corpo dormia, e ainda assim ela sussurrava nos sonhos.
— Então vamos ficar assim pra sempre? — perguntou, resignado.
— Até você aprender que não existe "pra sempre". Só este agora. Só este cigarro. Só este vazio que insiste em ser preenchido, mas nunca se preenche.
A brasa morreu na ponta. Ele largou a bituca no cinzeiro, como quem encerra uma missa profana. O relógio marcava meia-noite. Ansiedade se calou. Não porque tivesse piedade, mas porque sabia que voltaria amanhã.
E o homem, sozinho na sala, percebeu; a vida era exatamente isso. Uma conversa interminável com o fantasma que o corroía.
Brilhante, sombrio e profundamente humano.
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