Conheça Cosmere; o ambicioso universo de Brandon Sanderson que transformou a fantasia em um épico interconectado

Arte de 'O Ritmo da Guerra'

• Por Alisson Santos 

Em uma época em que universos compartilhados dominam o cinema e as séries, poucos projetos literários conseguem alcançar o mesmo nível de coesão, escala e planejamento a longo prazo. Na fantasia, nenhum exemplo é tão impressionante quanto o Cosmere, o vasto universo criado pelo escritor norte-americano Brandon Sanderson, hoje considerado um dos autores mais influentes e populares do gênero. Mais do que um simples cenário, o Cosmere é um mosaico de mundos, culturas, sistemas mágicos e conflitos cósmicos que se estendem por dezenas de livros e décadas de publicação.

Desde o lançamento de Elantris em 2005, Sanderson vem tecendo uma teia de histórias que, à primeira vista, parecem independentes. No entanto, para os leitores atentos, cada romance revela pequenas conexões que apontam para algo maior; um universo compartilhado, regido por leis próprias, no qual eventos em um planeta ecoam em outros, e personagens podem atravessar mundos como viajantes entre dimensões.

O QUE É O COSMERE?

O Cosmere é uma galáxia fictícia onde se passam várias das principais obras de Sanderson. Cada série ocorre em um planeta diferente, com geografia, história e culturas próprias, mas todos conectados por uma mesma estrutura cósmica e por uma origem comum da magia. Não se trata apenas de “easter eggs”; há uma mitologia central que sustenta tudo, ainda parcialmente revelada, e que caminha para um grande arco narrativo final.

Sanderson costuma dizer que escreve histórias locais com impacto universal. O leitor pode acompanhar uma revolução, uma guerra ou um drama pessoal sem jamais perceber, de início, que aquilo faz parte de algo muito maior. Mas, conforme o Cosmere se expande, fica claro que essas narrativas são peças de um tabuleiro cósmico.

A ORIGEM: ADONALSIUM E OS FRAGMENTOS 

No coração do Cosmere está um mito fundador; a existência de uma entidade primordial chamada Adonalsium, que concentrava um poder praticamente divino. Em um passado remoto, esse ser foi destruído, e seu poder foi dividido em dezesseis Fragmentos, cada um representando um aspecto ou “intenção” fundamental da existência, como Preservação, Ruína, Honra, Cultivação, Ódio, entre outros.

Adonalsium e os 16 fragmentos

Esses Fragmentos foram assumidos por indivíduos que passaram a exercer influência quase divina sobre diferentes mundos do Cosmere. Embora imensamente poderosos, eles são limitados por sua própria intenção; um Fragmento de Ruína tende à destruição, enquanto um de Preservação busca manter tudo como está. Esse conflito entre intenções é o motor oculto de muitos dos grandes eventos das séries. Cada planeta do Cosmere foi moldado, direta ou indiretamente, pela presença de um ou mais Fragmentos, e é dessa influência que nascem os sistemas de magia tão distintos entre si.

MUNDOS QUE PARECEM UNIVERSOS PRÓPRIOS 

Uma das maiores virtudes do Cosmere é que cada saga funciona como um universo completo:

Scadrial, de Mistborn, começa como um mundo oprimido por um império aparentemente eterno, onde a magia se manifesta pela ingestão e “queima” de metais, concedendo habilidades específicas — da manipulação de emoções ao controle físico do aço e do ferro. A série evolui de uma fantasia sombria para um épico que atravessa séculos, explorando revoluções, deuses e até avanços tecnológicos.

Roshar, cenário de Os Relatos da Guerra das Tempestades, é talvez o mundo mais complexo já criado por Sanderson. Varrrido por tempestades devastadoras, com fauna, flora e arquitetura moldadas por esse clima extremo, o planeta abriga culturas profundamente distintas e uma magia ligada a juramentos, espíritos naturais chamados spren e espadas míticas. É aqui que o autor desenvolve alguns de seus personagens mais marcantes, como Kaladin, Shallan e Dalinar, em uma saga que mistura guerra, política, fé e saúde mental.

Sel, de Elantris, apresenta uma magia baseada em símbolos geométricos que funcionam quase como uma linguagem sagrada, desenhada no ar ou no chão. A história mistura intrigas políticas, religião e a decadência de uma cidade outrora divina.

Nalthis, de Warbreaker, traz um sistema mágico fundamentado na troca de “Sopro” — fragmentos de energia vital que podem ser acumulados, doados ou usados para dar vida a objetos, criando os enigmáticos Despertos.

Esses são apenas alguns exemplos. Há ainda mundos explorados em contos e novelas, cada um ampliando a diversidade e a escala do Cosmere.

SISTEMAS DE MAGIA COM REGRAS 

Sanderson é famoso por sua abordagem quase científica da magia. No Cosmere, nada acontece “porque sim”. Todo poder tem custo, limites e consequências. Essa filosofia, conhecida entre fãs como as “Leis de Sanderson”, torna os conflitos mais tensos e críveis; vitórias são conquistadas com engenhosidade, sacrifício e compreensão das regras, não com soluções milagrosas.

Ao mesmo tempo, o autor consegue fazer com que essas magias não sejam apenas mecânicas, mas profundamente ligadas aos temas de cada história; fé, identidade, liberdade, responsabilidade e o peso das escolhas.

OS ANDARILHOS DO COSMERE 

Embora a maioria das histórias foque em conflitos locais, existe um grupo de personagens que transcende planetas; os chamados worldhoppers, viajantes capazes de cruzar os limites entre mundos. O mais famoso deles é Hoid, uma figura misteriosa que aparece em praticamente todos os grandes livros do Cosmere, às vezes como bobo da corte, às vezes como mendigo, contador de histórias ou informante.

Hoid um dos worldhoppers

Hoid parece saber mais sobre o Cosmere do que qualquer outro personagem, e seus verdadeiros objetivos permanecem envoltos em mistério. Para muitos leitores, encontrá-lo em cada nova obra é parte da diversão, uma espécie de fio condutor invisível entre narrativas aparentemente desconectadas.

UMA LEITURA EM CAMADAS

O Cosmere funciona em dois níveis. No primeiro, cada livro é uma história completa, com começo, meio e fim, acessível a qualquer leitor. No segundo, existe uma camada de conexões, pistas e referências que só se revelam para quem lê várias obras e começa a juntar as peças. Termos repetidos, conceitos mágicos similares, personagens que mudam de nome — tudo contribui para a sensação de que há sempre algo a mais por trás da superfície.

Arte conceitual de um dos livros da série de romances "Stormlight" de alta fantasia, planejada para consistir em dez livros

Essa estrutura faz com que o universo seja constantemente revisitado pelos fãs, em busca de teorias e interpretações. Comunidades online dissecam cada novo lançamento, transformando o Cosmere em um verdadeiro quebra-cabeça coletivo.

UM PLANO DE VIDA

Diferente de muitos universos que crescem de forma orgânica, o Cosmere foi planejado desde o início. Sanderson já afirmou que tem em mente o arco geral da história, que deve se estender por algo em torno de 30 a 40 livros principais, além de novelas e contos. Séries como Mistborn devem atravessar diferentes “eras”, passando de uma fantasia medieval para cenários com tecnologia quase futurista, sempre dentro do mesmo mundo. A ideia é que, no futuro, as histórias converjam para um conflito maior envolvendo os Fragmentos e o destino do próprio Cosmere.

POR ONDE COMEÇAR?

Para novos leitores, a liberdade é uma das vantagens. Não existe uma ordem obrigatória. Mistborn: O Império Final costuma ser recomendado por sua narrativa direta e ritmo envolvente. O Caminho dos Reis é ideal para quem quer mergulhar de cabeça em uma fantasia épica densa e complexa. Elantris e Warbreaker funcionam como romances únicos, ótimos para conhecer o estilo do autor.

A coletânea Arcanum Unbounded reúne contos e textos explicativos que expandem o conhecimento do Cosmere, embora seja mais indicada para quem já leu algumas das séries.

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