Conto | O Cartógrafo de Sangue

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos 

Ninguém percebeu o primeiro mapa.

Ele estava ali, invisível a olhos comuns, desenhado no asfalto de um beco do bairro do Cais Velho, onde encontraram o corpo de uma mulher sem nome numa madrugada de chuva. O sangue dela não escorrera ao acaso; corria em sulcos precisos, como se a rua tivesse sido riscada com linhas invisíveis esperando por aquele vermelho para se revelar.

Os peritos falaram em encenação.
Os jornais, em ritual.
Mas o investigador Raul Menezes sentiu algo pior; intenção.

A mulher fora esvaziada. Não havia quase uma gota dentro do corpo. O assassino não apenas matara — recolhera.

E levara o sangue embora.

Na semana seguinte, outro corpo; um estivador do porto, pendurado pelas pernas sob um viaduto. O sangue pingara sobre o concreto e, outra vez, formava algo que não parecia aleatório. Raul fotografou tudo, imprimiu, ligou pontos com caneta vermelha. Quando sobrepôs as imagens, o desenho surgiu; um trecho do mapa da cidade.

— Ele está desenhando — murmurou Raul.

Ao seu lado, a parceira, Lívia Torres, arqueou as sobrancelhas.

— Com sangue?

— Com vidas.

A imprensa batizou o assassino de O Cartógrafo.

A cada vítima, um novo fragmento surgia; ruas, praças, vielas esquecidas, becos que nem constavam mais nos registros oficiais. O sangue era despejado em locais específicos, como se obedecesse a uma cartografia invisível. Mas nunca encontravam o recipiente. Nunca viam o transporte. Nunca havia rastros.

Era como se o próprio assassino soubesse fazer o sangue andar.

Além disso, começaram a chegar as cartas.

Sempre ao entardecer.
Sempre sem remetente.
Sempre manchadas.

Não com respingos aleatórios, mas com marcas de dedos, símbolos, círculos e traços que lembravam alfabetos mortos. Algumas vinham acompanhadas de versos:

"Toda cidade tem veias. Toda veia pede corte. E quando o mapa se fechar, a porta também se abre."

Raul não dormia mais. Lívia passava noites inteiras cruzando dados, revisando câmeras, interrogando moradores. Nada. Nenhuma testemunha. Nenhum suspeito recorrente. As vítimas não tinham ligação aparente; idades, profissões, gêneros, bairros — tudo aleatório.

— Ele escolhe pelo mapa, não pelas pessoas — disse Lívia certa noite, cercada de fotos. — As pessoas são só a tinta.

O quinto corpo mudou tudo.

Foi encontrado dentro da antiga Catedral de São Lázaro, abandonada desde um incêndio décadas antes. Um homem ajoelhado diante do altar, com o peito aberto como um livro. No chão, o sangue desenhava algo novo; um símbolo circular, com linhas partindo do centro — como uma rosa dos ventos deformada.

No altar, escrito com o próprio sangue da vítima:

"O coração da cidade."

Raul reconheceu o símbolo. Vira algo parecido num livro antigo de urbanismo místico que seu pai guardava; mapas medievais que misturavam ruas com conceitos de alma, inferno, purgatório.

— Isso não é só geografia — disse Raul, a voz falha. — É… é um mapa espiritual.

Lívia engoliu seco.

— Você está dizendo que ele está tentando… o quê? Invocar a cidade?

Raul não respondeu. Mas à noite sonhou com ruas pulsando como veias, com prédios respirando, com a cidade inteira curvada sobre um abismo aberto sob suas fundações.

Com o sexto assassinato, veio a certeza.

Uma criança.

O corpo foi encontrado em um parque, dentro de um círculo perfeito de sangue. Nenhum corte visível além de um pequeno furo no pescoço. Como se algo tivesse sugado tudo de dentro.

A comoção foi nacional. Forças federais, perfis comportamentais, ocultistas, psicólogos, padres, matemáticos. A investigação virou uma máquina gigantesca que girava em falso.

Raul e Lívia receberam uma nova carta naquela mesma noite:

"Vocês olham para o chão, mas eu escrevo no corpo da cidade. Cada morte acorda uma rua. Cada rua lembra um nome. E quando todos forem lembrados, ela abrirá os olhos."

No verso, um novo fragmento do mapa — feito não com tinta, mas com sangue seco.

Raul juntou todos os pedaços. Sobre a mesa, formaram quase toda a cidade. Faltava apenas um ponto; o centro exato.

— Onde? — perguntou Lívia.

Raul respirou fundo.

— Aqui.

Apontou para o próprio prédio da polícia.

Nada aconteceu.

Revistaram cada sala, cada arquivo, cada funcionário. Nada. Nenhum símbolo, nenhum rastro, nenhum altar escondido. A teoria virou piada entre alguns colegas. Raul quase foi afastado por paranoia.

Naquela mesma semana, o sétimo corpo apareceu.

Um mendigo, morto sob a escadaria da delegacia.

O sangue escorrera pelos degraus formando, perfeitamente, o ponto central que faltava no mapa.

E ao lado, escrito:

"O mapa está completo."

Naquela noite, a cidade sofreu um apagão.

Por três minutos, todas as luzes se foram. Nenhum sistema funcionou. Nenhum gerador ligou. Como se algo tivesse sugado a energia do lugar inteiro.

Raul e Lívia estavam do lado de fora quando sentiram; o chão vibrar levemente, como um coração distante começando a bater.

Então tudo voltou.

Nenhuma explosão. Nenhum terremoto. Nenhuma explicação.

Só o silêncio.

Depois disso, os assassinatos cessaram.

Sem aviso.
Sem despedida.

A investigação continuou por meses, depois anos. O caso virou lenda. Raul se aposentou mais cedo, atormentado por sonhos com mapas que sangravam. Lívia escreveu um dossiê de quase mil páginas que nunca levou a lugar algum.

Nunca houve suspeito.
Nunca houve rosto.
Nunca houve voz.

O Cartógrafo virou um fantasma.

Dez anos depois, uma enchente revelou algo nas galerias subterrâneas da cidade.

Uma sala circular, antiga, impossível de constar em qualquer planta. Nas paredes, veias esculpidas na pedra. No centro, um mosaico formado por milhares de marcas escuras — análises confirmaram depois; sangue humano fossilizado.

No teto, a frase gravada:

"A cidade agora lembra."

E no chão, ao centro, um corpo.

Não havia sinais de violência.
Nem sangue fora do lugar.
Só uma expressão de paz.

No bolso do casaco, um crachá antigo da polícia, irreconhecível pelo tempo, mas ainda legível:

Raul Menezes.

Oficialmente, Raul estava aposentado. Vivo. Em casa.

Mas naquela mesma noite, quando Lívia foi visitá-lo para confirmar, encontrou o apartamento vazio.

Na mesa da sala, apenas um envelope.

Dentro, uma última carta:

"Todo mapa precisa de um guardião. Agora você sabe onde me encontrar. Basta escutar quando a cidade sangrar."

Lívia olhou pela janela.

Por um instante — só um — teve a impressão de ver as ruas lá embaixo se moverem, lentamente, como linhas vivas sob a pele de algo imenso.

Desde então, às vezes, surgem mortes estranhas.
Poucas. Isoladas. Quase invisíveis.

E sempre há quem jure que o sangue, ao cair no chão, não escorre… procura.

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