Conto | O Silêncio do Segundo Céu

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos

No ano de 2186, a humanidade fez aquilo que por séculos temeu; recebeu uma resposta.

O sinal veio de uma galáxia próxima, emitido em uma frequência que nenhum equipamento deveria captar. Parecia uma prece, mas contorcida - misturava matemática pura com uma melodia dissonante, como se cada nota desafiasse as leis da criação. Códigos binários se alternavam com palavras sagradas em línguas esquecidas, algumas que jamais haviam sido catalogadas na Terra. Os astrônomos chamaram de "Sinal Abel", por ser a primeira coisa morta que respondeu.

A ONU, em colapso sob guerras por água e dados, uniu-se à última aliança científica remanescente: o Conselho de Humanidade Integrada (CHI). Eles construíram uma nave interestelar nomeada Arca de Salmos, híbrida entre tecnologia humana e fragmentos de artefatos descobertos em Enceladus. A missão era simples e suicida; rastrear a origem do sinal e entender sua mensagem.

Quando a Arca partiu, o mundo orou. Quando retornou, sete anos depois, o mundo se calou.

A nave chegou flutuando acima do Oceano Ártico, danificada, coberta por um lodo que nenhuma análise conseguiu identificar. Das 73 pessoas a bordo, apenas uma retornou; a linguista Ema Vahl, antes cética, agora transfigurada. Seus olhos eram como mármore. Ela falava apenas em uma mistura de aramaico, latim e uma língua gutural não identificada. Mas o mais assustador era seu silêncio; ela sorria enquanto sua sombra chorava.

O local onde a Arca desceu se transformou rapidamente. O solo se curvou para cima, o tempo desacelerava, pássaros morriam no ar como se o espaço rejeitasse o movimento. A ONU ergueu um muro quântico ao redor da área, agora chamada de "O Ventre".

Os primeiros a violar o isolamento foram os peregrinos - religiosos, desesperados, loucos - que acreditavam que ali era o novo Éden. Depois vieram os cientistas. Depois... as coisas começaram a desaparecer. Horas. Nomes. Pessoas. E, por fim, o som.

Na fronteira do Ventre, o som se curvava e quebrava. Nenhuma gravação durava mais de três segundos sem corromper. Cães se recusavam a latir. Corvos morriam com os bicos abertos. Era como se a realidade ali estivesse sendo editada, por uma inteligência que não queria ser ouvida, nem compreendida.

Foi nesse cenário que surgiu o nome de Aurélio Verdan, um exobiólogo que havia sobrevivido ao suicídio coletivo de um culto. Enquanto todos ao seu redor se envenenavam para "abrir a escuta divina", Aurélio sobreviveu - com os tímpanos rompidos e os ossos auditivos calcificados. O único que não pôde mais ouvir… e talvez por isso, sobreviveu.

Aurélio formulou uma hipótese que foi chamada de insana por seus pares, mas logo ganhou tração nos círculos ocultos da ciência; a Teoria do Silêncio Hostil.

Segundo ele, o universo parecia silencioso não por escassez de vida, mas por instinto de sobrevivência. Assim como numa floresta escura, onde qualquer criatura que faça ruído é devorada, o cosmos havia aprendido a se calar. O sinal que a Terra recebera fora uma armadilha - ou pior, um pedido de socorro interrompido.

Mas a humanidade respondeu.

A Arca não retornou apenas com Ema. Retornou com um eco. Uma presença. Algo que ouvia os pensamentos antes mesmo que eles fossem formados.

Aurélio viajou até a fronteira do Ventre com uma equipe reduzida. Levava consigo dois instrumentos: um alvejador sígnico, capaz de isolar ondas cerebrais dentro de uma bolha de vácuo psíquico, e um Evangelho Negro, um livro que ele afirmava ter escrito sob possessão - com páginas preenchidas por palavras que só surgiam sob luz negra.

No coração do Ventre, encontrou-se com um ser que parecia uma mulher - mas não era. A boca de Ema agora se movia como uma fenda em rotação. Sua voz não saía mais de sua garganta, mas do ambiente ao redor, como se o próprio espaço falasse por ela. Ela não ria. Mas o céu ria com ela.

“Vocês foram criados porque Deus não suportava o próprio pensamento”, ela disse. “E agora pensam que ouvirão algo além do eco da culpa?”

O chão se abriu.

Sob o Ventre havia uma Biblioteca Viva; uma entidade feita de carne trêmula, costurada por línguas, que continha todos os textos sagrados já imaginados - inclusive os que jamais foram escritos. Ali, Aurélio leu o Evangelho de Nefilim, que revelava a verdade esquecida; antes de criar a luz, Deus tentou destruir algo mais antigo que Ele - a Linguagem Pura, um verbo absoluto onde nada podia ser escondido.

Essa linguagem tornava qualquer consciência vulnerável. Não se podia mentir, esconder, fingir. O pensamento era o corpo. A verdade, inevitável. E por isso, Deus a quebrou. Mas os pedaços escaparam. E agora, ao tentar ouvir o universo, a humanidade os invocou.

Aurélio não saiu do Ventre. Não como humano.

Dias depois, no mundo inteiro, o som morreu.

As sinfonias evaporaram. A fala se desfez em chiado. Os sinos, as ondas, os batimentos... tudo cessou. E nos céus, surgiram figuras feitas de silêncio condensado, como rasgos na realidade. Chamaram-se Sussurrantes, mas eles nada diziam. Apenas estavam - e isso bastava.

O mundo implodiu em silêncio. As pessoas enlouqueciam tentando gritar, mas suas vozes morriam antes de nascer. A comunicação voltou aos gestos, às imagens, ao desespero.

E então, o espelho foi aberto.

No centro do Ventre, uma esfera negra surgiu - não refletia luz, mas consciência. E ali, todos viram. Viram que Deus existia. Mas não como criador. Deus era apenas o primeiro a sobreviver ao Silêncio, o único que fingiu não ouvir mais, para não ser devorado.

E agora, por nossa culpa, olharam de volta.

Último registro da humanidade:

“Pensamos que ouviríamos anjos. Encontramos o ruído do pensamento de Deus, gritando para ser esquecido.” - Aurélio Verdan, Bibliotecário do Segundo Céu

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