Crítica | A Longa Marcha: Caminhe ou Morra - Um purgatório em movimento, cuja simbologia resiste mesmo às limitações da adaptação.

Divulgação | Paris Filmes

• Por Alisson Santos 

Francis Lawrence assume um dos projetos mais desafiadores da carreira ao adaptar A Longa Marcha, romance escrito por Stephen King nos anos 1960 sob o pseudônimo Richard Bachman. A dificuldade é evidente; como traduzir para o cinema uma narrativa construída quase inteiramente sobre repetição, movimento e desgaste físico? O resultado é um filme que, embora não esteja isento de limitações, consegue imprimir uma atmosfera de agonia progressiva e de forte simbolismo político.

Tecnicamente, Lawrence se apropria de uma mise-en-scène que privilegia o tempo real. A câmera acompanha os corpos em deslocamento contínuo, e o diretor extrai do cenário rural um contraste que potencializa a monotonia ritualizada da marcha, cada paisagem funciona menos como um fundo e mais como uma extensão psicológica do sofrimento. Essa opção aproxima o filme de uma experiência quase performática; passos, respirações ofegantes e tiros substituem a trilha sonora convencional, tornando o design de som um dos pilares da tensão.

Se a repetição poderia se tornar um fardo, aqui ela é instrumentalizada como forma de esgotamento. A cadência monótona dos movimentos transforma-se em metáfora da própria vida em um regime autoritário; a rotina opressora, o controle do corpo pelo Estado, a ausência de pausas, a violência institucionalizada. O Major interpretado por Mark Hamill, ainda que subdesenvolvido como personagem, funciona como alegoria da máquina repressiva – não um homem, mas um emblema do autoritarismo naturalizado.

As alterações em relação ao livro — reduzir os competidores, mudar a velocidade, envelhecer os participantes — diluem parte do impacto brutal do texto original, mas também revelam um esforço de tornar a narrativa mais palatável ao cinema comercial. Ainda assim, a essência permanece; jovens sacrificados em um espetáculo de dor, corpos descartáveis diante de um desejo ilusório de vitória. A competição não é apenas um jogo mortal, mas um ritual de purificação negativa, uma marcha fúnebre que ecoa o recrutamento forçado da Guerra do Vietnã, contexto em que King escreveu a obra.

Divulgação | Paris Filmes

O filme encontra sua maior força simbólica na transformação da estrada em purgatório. A cada morte, a marcha avança como se fosse um cortejo interminável, e o caminho torna-se metáfora da vida submetida ao autoritarismo; um percurso sem escolhas, em que o indivíduo só existe até ser eliminado. A promessa do “desejo realizado” ao vencedor funciona como miragem de esperança — tão artificial quanto os sonhos vendidos por regimes totalitários ou pela própria lógica de consumo em tempos de crise.

Cooper Hoffman, no papel de Raymond, é o elo dramático mais sólido do elenco. Sua atuação injeta humanidade em um roteiro que, por vezes, se perde ao restringir o foco a quatro protagonistas principais, relegando os demais competidores a uma função secundária. Essa decisão narrativa limita a pluralidade de vozes que o livro sugere, mas fortalece a imersão no sofrimento físico individual.

Em síntese, A Longa Marcha: Caminhe ou Morra é menos sobre a lógica da competição e mais sobre a representação do corpo como campo de batalha. Lawrence transforma monotonia em linguagem, repetição em tortura sensorial e movimento em metáfora de um mundo devastado pela guerra e pelo autoritarismo. Apesar das concessões comerciais e de alguns personagens subexplorados, o filme cumpre seu papel como alegoria; uma procissão de jovens rumo à morte, onde a estrada é o palco e o espectador, cúmplice silencioso do espetáculo. 

O filme já está disponível nos cinemas.

Avaliação - 7/10

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