Crítica | GOAT - É um lembrete de que o cinema pode até transformar o esporte em liturgia, mas que uma metáfora sem mistério, um ritual sem alma e um sacrifício sem propósito acabam por não render glória alguma.
Divulgação | Universal Pictures |
• Por Alisson Santos
GOAT é um daqueles filmes que despertam no espectador uma estranha mistura de fascínio e frustração. Fascínio porque a premissa é poderosa, porque a estética é trabalhada com rigor e porque o tema — o futebol americano como religião moderna, palco de sacrifícios e culto a heróis — é fértil em possibilidades narrativas. Frustração porque o diretor Justin Tipping, embora ambicioso, parece não confiar na inteligência do público e acaba entregando um filme que prefere a superfície da metáfora à densidade da crítica, o choque fácil à construção psicológica consistente. O resultado é um longa que se anuncia como uma grande parábola esportiva e aterrorizante, mas que se dissolve em sua própria pretensão, preso entre o drama esportivo tradicional e um horror ritualístico que não encontra solidez.
A trama acompanha Cameron Cade, vivido por Tyriq Withers, um jovem quarterback universitário que carrega consigo tanto a promessa de ser um fenômeno quanto a maldição de uma lesão cerebral que ameaça encerrar sua carreira prematuramente. A vida lhe dá uma segunda chance quando surge a possibilidade de treinar com Isaiah White, seu ídolo de infância e lenda viva do esporte, interpretado por um surpreendente Marlon Wayans em um dos papéis mais intensos de sua carreira. É nesse encontro entre o novato e o veterano que o filme busca estruturar sua narrativa; um rito de passagem, a transmissão da chama, mas também um mergulho em um mundo cada vez mais estranho, em que treino e ritual religioso se confundem até se tornarem indistinguíveis.
Tipping deixa claro desde os primeiros minutos que pretende transformar o campo de futebol em um altar de sacrifício. O prólogo, que mostra White em campo sofrendo uma grave lesão, é construído como uma espécie de epifania sombria; cruzes, velas e imagens religiosas cercam o momento, sugerindo que cada jogada carrega consigo a carga simbólica de um martírio. O espectador é conduzido a acreditar que o esporte, aqui, é mais que um espetáculo; é uma liturgia, e os jogadores são tanto santos quanto vítimas. É uma ideia promissora, mas o diretor insiste tanto em reiterá-la que logo o encanto se perde. As metáforas, em vez de sussurrarem, gritam. A noção de sacrifício é repetida à exaustão, as referências religiosas são tão óbvias que não deixam espaço para interpretação, e as imagens que poderiam ser sutis acabam funcionando quase como um manual ilustrado da própria simbologia que carregam.
É nesse ponto que a frustração começa a tomar forma. Um filme que poderia ter explorado o poder das insinuações, da sugestão e da ambiguidade, opta pelo caminho da explicação redundante. O público não tem a chance de se perder em uma leitura pessoal; tudo é oferecido mastigado, o que mina a força da metáfora e retira da obra qualquer senso de mistério. A cena em que Cade aparece em uma mesa cercado por jornalistas que recriam "A Última Ceia" de Leonardo da Vinci é exemplar nesse sentido; bela na construção plástica, mas tão literal que perde o impacto emocional.
Divulgação | Universal Pictures |
Ainda assim, GOAT tem méritos estéticos que não podem ser ignorados. A fotografia de Kira Kelly é cuidadosa ao transformar Cade em uma figura aureolada de luz dourada, um Cristo moderno em busca de redenção, enquanto White é cercado por sombras, quase como um tentador demoníaco. A direção de arte de Jordan Ferrer cria ambientes austeros, desertos e edifícios que parecem templos pagãos erguendo-se no meio do nada. Há momentos visuais que de fato impressionam, como os efeitos que simulam raios X durante colisões nos treinos, transformando impactos esportivos em pequenas cenas de horror corporal. Mas, assim como as metáforas, esses recursos perdem força à medida que são repetidos sem variação, até se tornarem previsíveis.
Se a forma encanta, o conteúdo esbarra na fragilidade das personagens. Cade, que deveria carregar o peso da narrativa, é raso e indecifrável não porque o roteiro o queira enigmático, mas porque lhe falta substância. Seus dilemas morais não são explorados com rigor; sua religiosidade nunca é aprofundada; sua ambição se resume a ser um grande jogador. Suas reações se limitam a duas expressões — surpresa e confusão —, o que torna sua trajetória inverossímil e sua decisão final abrupta, quase desconectada daquilo que o filme construiu.
No extremo oposto, Marlon Wayans é quem sustenta o longa com uma performance magnética. Carismático, intenso e persuasivo, seu Isaiah White é mentor e algoz, guia e carrasco, oscilando entre a figura inspiradora e a força corruptora. Seus monólogos são os momentos mais fortes do filme, não apenas pela entrega do ator, mas porque trazem um vislumbre do que GOAT poderia ter sido; uma investigação poderosa da relação entre ídolo e discípulo, entre herança e sacrifício, entre glória e condenação. Infelizmente, o roteiro não se interessa por essa profundidade, preferindo investir em choques superficiais e em uma ritualística que, quando finalmente revelada, beira a paródia.
O terceiro ato, em especial, é onde o filme desmorona de vez. A mitologia construída ao longo da narrativa se mostra inconsistente, os rituais que deveriam perturbar soam artificiais e até risíveis, e o horror sobrenatural perde qualquer poder simbólico. A impressão é de que o filme, ao tentar abraçar muitas ideias ao mesmo tempo — crítica ao culto da personalidade, denúncia da violência no esporte, metáfora religiosa, horror corporal e sobrenatural —, acaba não desenvolvendo nenhuma com profundidade.
GOAT é, no fim das contas, uma promessa desperdiçada. O potencial era imenso; transformar o futebol americano, um dos símbolos mais lucrativos e idolatrados da cultura norte-americana, em metáfora para a máquina de sacrifícios que devora corpos e mentes em nome do espetáculo. Mas o que chega às telas é um produto visualmente sedutor e dramaticamente vazio, um filme que subestima seu público e prefere o conforto da obviedade à ousadia da sugestão. Há talento diante das câmeras, há competência técnica, há lampejos de uma grande ideia. O que falta é coesão, coragem e confiança na força do próprio símbolo.
O filme já está disponível nos cinemas.
Avaliação - 5/10
Resumiu perfeitamente meu sentimento. Talento visual e elenco comprometido, mas nada a dizer além do próprio enunciado; obsessão, sacrifício, bla bla bla. É a estilização reiterada pra esconder o vazio.
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