Crítica | Ângela Diniz: Assassinada e Condenada - Não é apenas uma história sobre uma mulher assassinada. É sobre um país inteiro ainda incapaz de lidar com mulheres vivas.

Divulgação | HBO Max

• Por Alisson Santos 

Há crimes que marcam uma época. Outros, transcendem o tempo e se transformam em espelho das estruturas mais sombrias de uma sociedade. O assassinato de Ângela Diniz, em 1976, é um desses casos — e a nova minissérie da HBO, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, dirigida por Andrucha Waddington e estrelada por Marjorie Estiano, encara essa ferida com a coragem de quem sabe que revisitar o passado é, inevitavelmente, confrontar o presente.

A série, dividida em episódios que mesclam drama, tribunal e reconstrução histórica, não busca apenas recontar o crime — ela o desdobra como metáfora da própria violência estrutural que ainda define o destino de tantas mulheres brasileiras. É um projeto que fala de 1976, mas ressoa 2025 com força brutal.

Ângela Diniz (Marjorie Estiano) surge, desde o primeiro episódio, não como a vítima de um feminicídio, mas como uma mulher que ousou viver livre. Separada, mãe, socialite de traços firmes e vida pulsante, ela se recusa a se enquadrar na moral do tempo. Bebe, dança, ama, deseja. Essa recusa em caber em moldes é o verdadeiro “crime” que antecede o crime físico. Estiano interpreta Ângela com uma entrega impressionante — há nela uma mistura de altivez e vulnerabilidade que transforma cada cena em confronto direto com o espectador. Ela encarna a liberdade como quem sabe que o preço será cobrado. Sua Ângela não busca piedade nem heroísmo; busca existir. E é precisamente isso que incomoda todos à sua volta.

Ao lado dela, o elenco coadjuvante reforça as tensões de uma época; o machismo sorrateiro dos círculos sociais, o paternalismo dos tribunais, o moralismo que julga uma mulher não por seu crime (que não existe), mas por seus costumes. A figura do assassino — Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, interpretado aqui com inquietante contenção — aparece como produto e cúmplice dessa estrutura; um homem que não suporta ser confrontado pela autonomia feminina.

O grande mérito da direção de Waddington é não reduzir a história a uma reconstituição policial. Ângela Diniz: Assassinada e Condenada se distancia da estética de “true crime” que domina o streaming e se aproxima de um drama social e psicológico. O assassinato é o ponto de partida, não o clímax. O verdadeiro julgamento — e é isso que o título revela — não é o de Doca, mas o de Ângela. Condenada pela sociedade antes de ser assassinada, ela é julgada por ter amado, por ter desejado, por ter ousado romper com o script imposto às mulheres “de bem”.

Waddington utiliza o tribunal como teatro simbólico do país. Entre flashes de câmeras, vozes masculinas e argumentos absurdos sobre “legítima defesa da honra”, a série expõe o Brasil dos anos 70 em toda a sua contradição; moderno nas aparências, arcaico na essência. E é aí que a série atinge seu ponto mais forte; ao mostrar que, no fundo, o corpo de Ângela se tornou um campo de batalha onde se mediram as forças de uma sociedade inteira.

A estética da série é de uma sofisticação calculada. O primeiro episódio exala perfume, festa e mar — a Búzios de Angela é um refúgio de liberdade, sol e desejo. Mas, à medida que a trama avança, o brilho se converte em sombra. O mesmo mar que parecia libertador torna-se espelho do isolamento. A fotografia, com tons quentes que gradualmente cedem lugar a uma paleta fria, traduz visualmente a deterioração da liberdade. Há uma cadência melancólica que permeia toda a montagem, como se cada frame pressentisse o destino inevitável. O figurino, fiel aos anos 70, evita o excesso e investe em uma elegância que comunica mais do que exibe. Cada detalhe — dos vestidos de Ângela à rigidez dos ternos masculinos — reforça o contraste entre o corpo feminino livre e as estruturas sociais que o aprisionam. A trilha sonora é outro acerto; um diálogo entre o hedonismo da época e o tom sombrio da tragédia. As músicas de boate, que antes pareciam celebrar a vida, retornam em ecos distorcidos, como se o prazer fosse também uma forma de resistência.

Divulgação | HBO Max

Se há algo que eleva Ângela Diniz: Assassinada e Condenada a um patamar acima do convencional, é a atuação de Marjorie Estiano. Ela não interpreta Ângela — ela a habita. Há uma inteligência emocional rara em sua entrega, uma consciência do peso simbólico da personagem. Sua performance evita a caricatura da “mulher mártir” e também o estereótipo da “mulher fatal”. Ângela é humana; contraditória, frágil, corajosa. A atriz constrói, com gestos mínimos e olhares precisos, uma figura que parece sempre à beira de ser incompreendida — e é justamente isso que a torna verdadeira. Estiano revela uma Ângela que, mesmo diante da violência, não perde a dignidade. Há uma cena, especialmente, em que o olhar dela silencia um ambiente inteiro. Não há discurso, apenas presença. E ali, a série atinge o que talvez seja sua maior ambição; devolver voz a quem foi silenciada.

O roteiro, assinado por Elena Soárez, Pedro Perazzo e Thais Tavares, faz uma escolha inteligente; não tenta reescrever os fatos, mas contextualizá-los à luz do presente. O caso que chocou o país há quase 50 anos é relido sob o prisma do feminicídio e da cultura da impunidade. O argumento de “legítima defesa da honra” — usado pela defesa de Doca Street e aceito por parte da sociedade à época — é tratado como o verdadeiro vilão. A série expõe o absurdo jurídico e moral dessa justificativa, lembrando o espectador que ela só foi oficialmente banida pelo STF em 2023. Ou seja, Ângela Diniz morreu em um Brasil que ainda existe. Ao final, fica claro; o que a produção da HBO propõe não é nostalgia, mas denúncia. Ângela Diniz: Assassinada e Condenada é menos sobre o passado e mais sobre o que ainda não mudamos.

O título é um acerto de ironia e brutalidade. Porque, na verdade, quem foi condenada não foi apenas Ângela, mas toda mulher que ousou existir fora do que se esperava dela. A série se apropria desse duplo sentido com precisão cirúrgica. Em várias cenas, o espectador é levado a confrontar as vozes do julgamento; a imprensa que a chamou de “feminista devassa”, os advogados que a desumanizaram, a sociedade que preferiu culpar a vítima a encarar a própria covardia. Esse eco moral atravessa os episódios e encontra ressonância no presente, quando feminicídios seguem banalizados e o julgamento social continua mais rápido que o jurídico.

Há, evidentemente, pequenas hesitações; em certos momentos, o roteiro peca por didatismo; em outros, o ritmo se alonga demais em cenas de tribunal. Mas esses deslizes não diminuem a força do conjunto. O resultado é um retrato tenso, elegante e profundamente humano sobre o preço da liberdade feminina em um país ainda machista. A direção é sensível, a fotografia é belíssima, e Marjorie Estiano entrega uma das atuações mais maduras de sua carreira — possivelmente a melhor.

No fim, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada não é apenas uma história sobre uma mulher assassinada. É sobre um país inteiro ainda incapaz de lidar com mulheres vivas.

Ângela Diniz: Assassinada e Condenada é composta por seis episódios, os dois primeiros estão programados para estrear em 13 de novembro na HBO e HBO Max, simultaneamente.

Avaliação - 8/10

Comentários

  1. Luciana Moreira10/11/25

    Tomara que seja melhor do que aquele filme.

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