Conto | Onde Mora o Medo, Também se Constrói Refúgio

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos

Alisson morava só, mas o quarto parecia morá-lo. A madeira do assoalho estalava como se respirasse, e as paredes - sempre ligeiramente úmidas, mesmo no verão - se inclinavam sobre ele com uma paciência mórbida. Era como viver dentro de um casulo que esperava o momento certo para apertar.

Numa noite de calor, enquanto o mundo lá fora fervia em silêncio, Alisson notou uma pequena construção se formando no alto da parede, entre o mofo e o teto descascado. Um maribondo, solitário e inabalável, erguia uma casinha acinzentada com movimentos repetidos, quase rituais. Alisson sentiu um arrepio, não pelo inseto, mas por aquilo que o inseto representava - uma intrusão silenciosa, uma decisão de ficar.

Subiu numa cadeira. Chinelo na mão. Ia esmagar a casa antes que ela ganhasse dimensão. Mas então algo... cedeu.

Não foi a cadeira, nem o teto. Foi o ar. Ele pareceu afundar de repente, como se o chão tivesse sugado uma lufada de oxigênio. A lâmpada piscou três vezes e morreu. O ventilador rangeu. O silêncio que se instalou depois não era comum - era um silêncio de submersão. Alisson ficou paralisado, como se algo o observasse de dentro das paredes.

Virou-se devagar. E lá estava.

No meio do quarto, um amontoado de formas molhadas, pendendo do teto por fios que pareciam intestinos de luz e cobre. Um polvo - mas sem olhos, sem simetria. As ventosas pareciam bocas famintas e tremiam como se sussurrassem segredos numa língua de fome. Cada tentáculo se enfiava numa tomada, num buraco, numa rachadura no reboco - sugando. Sugando tudo. A eletricidade. A energia. Mas também algo mais íntimo. Algo que escapava de Alisson e ele nem sabia nomear.

Ele tentou correr, mas o quarto era mais pequeno do que minutos atrás. As paredes agora curvavam como se tivessem se dobrado para dentro, e o chão estava quente e viscoso sob seus pés. O monstro parecia feito da própria escuridão do ambiente. Um bicho sem origem, sem som, mas com propósito. E faminto.

O que mais o aterrorizava não era a aparência do bicho, mas a sensação de que ele já estivera ali antes. Sempre. Como um peso esquecido nos ombros. Como as palavras que ele nunca disse, os choros engolidos, os dias onde fingiu estar bem.

Tentou enfrentá-lo com gritos, com socos, mas o monstro apenas absorvia. Nada nele respondia a força - apenas à desistência.

Foi então que Alisson escorregou. Caiu ao lado do balde que usava para limpar o mofo do canto. A água choca se espalhou pelo chão e tocou um dos tentáculos. O monstro se retraiu num espasmo violento. A sala pareceu estremecer, as tomadas faíscaram, e um cheiro de carne podre queimando encheu o ar.

Alisson, com mãos trêmulas e olhos vazios, entendeu.

A água - essa coisa banal, essa verdade líquida - feria o bicho.

E ele soube por quê. A água revela. A água inunda. A água arrasta.

Correu pelo quarto, derrubando baldes, puxando o pano molhado do banheiro, encharcando o chão. O bicho se contorcia como se tentasse fugir pelas frestas, mas era tarde. A umidade o diluía, cada gota era um pedaço de coragem que Alisson não sabia que tinha.

Quando tudo se acalmou, o quarto voltou a ser apenas um quarto. Silencioso, mofado, mas de novo dele. A lâmpada piscou e acendeu. O ventilador voltou a ranger.

No canto, o maribondo ainda estava lá. A casinha havia resistido.

Alisson olhou para ela. Não com nojo, mas com um respeito que beirava a reverência. Entendeu, de forma silenciosa, que há seres que constroem e seres que sugam. E que às vezes, quando se permite que o medo habite por tempo demais, ele cria tentáculos. Mas há sempre um balde, uma rachadura, uma chance de afogar o que nos consome. E talvez, só talvez, deixar o maribondo terminar sua casa fosse uma forma de lembrar que há espaço para pertencer - mesmo depois do horror.

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