Conto | A Casa de Vidro

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos 

Ícaro e Mateo chegaram à casa no início de um verão abafado. Tinham apenas duas malas, roupas simples, uns poucos livros e a promessa íntima de que, naquele isolamento, poderiam respirar pela primeira vez sem a sombra de sermões, olhares de condenação ou a palavra "pecado" sussurrada atrás de cada gesto.

A casa se erguia no alto de um campo amplo, rodeada por uma mata esparsa que rangia ao vento como ossos secos. Estranhamente bela, parecia um monumento ao silêncio; paredes inteiras de vidro erguidas no lugar de tijolos, unidas por vigas de ferro escuro que a sustentavam como a estrutura de um esqueleto. Quem a projetara? Por quê? Não havia vizinhos a quilômetros de distância. Era como se tivesse sido construída apenas para ser observada — ou para observar quem ousasse habitá-la.

Durante os primeiros dias, a casa foi um paraíso. A luz da manhã entrava inteira, banhando o espaço em dourado. Podiam ver os campos se estendendo até perder de vista, e à noite deitavam lado a lado, observando o céu estrelado sem precisar sair da cama.

"É como dormir dentro de um sonho", disse Mateo certa noite, sorrindo, a cabeça apoiada no peito de Ícaro.

Mas logo perceberam que o sonho tinha bordas afiadas.

Ao cair da noite, as paredes se transformavam. O vidro, antes translúcido, tornava-se uma superfície negra, polida, refletindo cada canto da casa. E não refletia apenas o que estava diante dele. Ícaro foi o primeiro a notar.

Estava sozinho na cozinha, preparando café, quando levantou os olhos e se viu no reflexo da parede. Mas não era ele; a figura no vidro estava debruçada sobre o balcão, as mãos ensanguentadas, os olhos vermelhos de choro. De repente, a figura ergueu o rosto e encarou-o com uma expressão de ódio puro. Ícaro deixou a xícara cair no chão, e o som seco ecoou pela casa vazia. Mateo correu, preocupado, mas Ícaro apenas disse que estava cansado, que fora impressão.

Nos dias seguintes, novas distorções apareceram. Às vezes, via-se velho, enrugado, os olhos fundos, sem dentes. Outras vezes, via-se morto nos braços de Mateo, ou brigando com ele como jamais havia acontecido. O reflexo parecia mais interessado em exibir futuros possíveis do que o presente real.

Mateo não se assustava. Chamava de "paranoia". Dizia que era apenas o peso das lembranças religiosas que Ícaro ainda carregava, a culpa injetada desde criança. “Isso tudo é só o medo de sermos vistos. Aqui ninguém olha, Ícaro. Só você mesmo.”

Mas então veio a madrugada em que a descrença morreu.

Mateo acordou com um barulho, como pancadas repetidas. Virou-se e viu Ícaro dormindo profundamente, o rosto tranquilo. Então, por instinto, olhou para a parede de vidro. Lá estava ele mesmo — ou algo que usava seu rosto. O reflexo tinha a pele rasgada, o corpo coberto de sangue, os dentes quebrados. As mãos batiam contra o vidro, com desespero, deixando rastros vermelhos. A boca se abria em um grito mudo. O vidro não deixava som passar, mas as batidas ecoavam de dentro do crânio de Mateo como se fossem dele.

A visão o paralisou. E foi nesse instante que percebeu que o reflexo não o imitava — não repetia seus movimentos. Era uma entidade independente, presa na escuridão do vidro, lutando para sair.

Na manhã seguinte, contou tudo a Ícaro. Pela primeira vez, os dois admitiram que a casa estava viva de alguma forma.

“Não são fantasmas”, disse Ícaro, os olhos vermelhos de tanto vigiar a noite anterior. “São nós. Só que... partidos. Refletidos em futuros que talvez existam.”

Mateo não respondeu. Mas no silêncio pesado, o pensamento se instalou como uma ferida; e se fosse verdade?

As noites seguintes foram um tormento. Os reflexos não apenas apareciam — eles interagiam. Certa noite, enquanto Ícaro acariciava os cabelos de Mateo no sofá, a parede ao lado refletiu os dois se estrangulando. Noutra, mostrava seus corpos pendurados por cordas, como se tivessem escolhido acabar juntos. Cada imagem parecia mais próxima, mais concreta, mais insistente. E quando as figuras batiam no vidro, a casa inteira vibrava como se fosse feita de ossos de metal.

Ícaro começou a temer o toque de Mateo. O reflexo os mostrava tão violentos, tão destruídos, que cada carinho real parecia um prenúncio. Mateo tentava acalmá-lo, mas também se via corroído, como se a casa não mostrasse apenas um destino, mas muitos — todos possíveis, todos à espera.

Uma madrugada, acordaram com um estrondo; o vidro da parede leste estava trincado. No reflexo, dezenas de versões deles se acumulavam, batendo, sorrindo, chorando, gritando. Um enxame de possibilidades humanas tentando romper a barreira.

“Se o vidro quebrar... eles entram”, disse Ícaro, a voz embargada.

“Ou nós saímos”, respondeu Mateo, sem saber se falava de fuga ou de outra coisa.

Na última noite, decidiram não dormir. Sentaram-se juntos no chão da sala, olhando para os reflexos que se multiplicavam nas paredes negras. As figuras estavam tão próximas que pareciam respirar contra o vidro, deixando marcas de vapor que não deveriam existir.

Mateo segurou a mão de Ícaro com força.
“E se não for sobre eles entrarem? E se for sobre a gente escolher em qual reflexo viver?”

Ícaro olhou ao redor, e pela primeira vez não viu apenas terror. Viu versões em que ainda estavam juntos, apesar da dor, apesar da velhice, apesar das perdas. Mas também viu aquelas em que o amor se transformava em violência, em traição, em morte. Talvez todos os futuros estivessem ali, esperando apenas uma decisão.

O som do vidro trincando percorreu a casa como um trovão subterrâneo. As paredes estremeceram. As figuras começaram a se projetar para fora, já não presas ao reflexo. Uma mão atravessou a superfície, feita de sombra líquida.

E então Ícaro e Mateo fecharam os olhos ao mesmo tempo.

Quando os abriram, estavam de novo no campo, diante da casa intacta, como se nada tivesse acontecido. Mas não tinham certeza se ainda eram eles mesmos — ou se haviam sido substituídos por uma das infinitas versões que bateram contra o vidro até finalmente se libertar.

Naquela manhã, não falaram nada. Apenas arrumaram as malas em silêncio. Ao saírem pelo portão, Ícaro olhou uma última vez para a casa de vidro. Do lado de dentro, dois homens os observavam, imóveis, sorrindo de um jeito que não era humano.

Comentários

  1. Que conto INSANO! A atmosfera que você criou em A Casa de Vidro é sufocante e poética ao mesmo tempo. A forma como o horror se mistura com o amor de Ícaro e Mateo é de arrepiar. Esse final então… arrepios reais! Parabéns, é o tipo de terror que mexe com a cabeça e fica ecoando depois da leitura.

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