Conto | Olhos do Amanhã

Divulgação | MDH Entretenimento

• Por Alisson Santos 

O céu de Nova Délos ardia em neon, uma ferida aberta de cores digitais refletidas nos arranha-céus de vidro e aço. Na superfície, porém, a realidade era outra: ruas afundadas na penumbra, preenchidas por espectros de humanidade. Os sem-nome. Os descartados. Seres humanos reduzidos a códigos binários, à mercê de um sistema onde a moeda era mais do que digital, era biológica.  

O olhar era a senha.  
A retina, o cofre.  

Nathan e Sienna eram os ladrões perfeitos.  

Eles operavam como sombras, navegando no espaço entre o real e o virtual, escolhendo suas presas entre a elite cega pela própria soberba. Nathan era o executor - preciso, discreto, mortal. Com um toque casual, capturava a assinatura ocular da vítima, extraindo sua identidade como um cirurgião da era digital. Sienna era o cérebro, infiltrando-se nos sistemas, apagando rastros, convertendo íris roubadas em créditos limpos. 

Mas eles não roubavam por dinheiro.  

Eles roubavam por uma chance de escapar.  

O Projeto Leap era sua única esperança. Uma máquina proibida, oculta nos subterrâneos de Nova Délos, capaz de transportar a consciência através do tempo. Um experimento condenado pela Corporação Helios - os senhores invisíveis do mundo.  

E estavam tão perto.  

Até que tudo deu errado.

1. O CRIME PERFEITO

O primeiro sinal foi o estrondo metálico da porta explodindo.  

Nathan acordou no mesmo instante, o cheiro de pólvora queimando o ar. O quarto estava tomado pelo caos: vidro estilhaçado, alarmes histéricos, gritos distorcidos por moduladores de voz.  

A Helios os encontrou. 

O instinto assumiu o controle. Ele correu. Correu para o laboratório, onde Sienna os esperava. Se conseguissem ativar o Leap, poderiam fugir.  

Mas ao chegar lá, o tempo parou.  

Sienna estava caída no chão.  

Sangue escorria de sua testa em uma linha cruel. Dois agentes em armaduras negras seguravam seu corpo inerte.  

- Alvo neutralizado.

Nathan sentiu o mundo ruir. Um vazio monstruoso o engoliu, substituindo o choque por um ódio visceral. Ele quis correr até ela, arrancar aqueles malditos capacetes dos agentes, fazer algo.  

Mas sabia que morreria ali.  

Então, ele fugiu. Sobreviveu. E prometeu encontrar um jeito de trazê-la de volta.  

2. A MENSAGEM NOS OLHOS 

Três dias depois. Um esconderijo. Uma garrafa vazia. A cidade pulsando lá fora como um organismo doente.  

O tablet piscou. Mensagem anônima.

Nathan quase ignorou. Mas então viu.  

O vídeo.

Sienna.

Ela estava ali. Não um holograma. Não uma gravação antiga. Sienna, viva.

- "Se você está vendo isso, amor... então eu morri."  

Sua voz era calma. Doce, até. Mas havia algo errado. Algo que fez Nathan prender a respiração.  

Seus olhos.  

O brilho. O reflexo impossível.  

- "Mas eu consegui. Eu saltei. Minha consciência está no futuro. E eu deixei um caminho para você."  

A tela se encheu de código. Símbolos pulsando em um padrão hipnótico. Uma chave. Um enigma.  

E então, o choque.  

O código não estava apenas na tela.  

Estava dentro dele. 

Seu implante neural reconheceu a estrutura em sua própria retina. 

Sienna tinha roubado seu olhar antes de morrer.  

E dentro desse olhar...estava o portal para o impossível. 

3. O SALTO PARA O DESCONHECIDO

O laboratório estava destruído, mas o núcleo do Projeto Leap ainda vibrava em energia latente.  

Nathan não hesitou. Conectou os fios ao crânio, sentindo o metal frio perfurar sua pele.  

A dor foi insuportável.  

O mundo se quebrou. A realidade se dissolveu. 

O vazio o engoliu.  

E então...ele abriu os olhos.

Mas o que viu não fazia sentido.  

Não era Nova Délos. 

Os prédios ainda estavam lá - mas pareciam novos. Sem os letreiros decadentes, sem as marcas do tempo. O céu era azul. O ar era puro. O mundo inteiro parecia...intocado.  

Então, uma voz atrás dele:  

- "Demorou, hein?"  

Nathan se virou.  

Sienna estava lá.  

Jovem. Viva. Mais jovem do que ele lembrava.

Seu coração disparou.  

Mas então ele viu o que estava atrás dela.  

E seu sangue gelou.  

4. O HORROR FINAL 

A cidade não era o futuro.  

Era o passado.  

E, pior...  

Os prédios eram os mesmos de Nova Délos -mas antes da queda, antes da dominação da Helios, antes da miséria digital.  

Nathan sentiu a bile subir na garganta.  

Sienna não tinha saltado para o futuro.  

Ela havia voltado para antes do colapso.  

Antes das megacorporações tomarem tudo. Antes da distopia nascer.  

E eles estavam presos ali.  

Se quisessem voltar, precisariam impedir o futuro de acontecer.  

Mas então, Sienna sorriu.  

E foi ali, naquele instante, que Nathan entendeu o verdadeiro horror.  

Ela não queria voltar.

Ela queria garantir que o futuro acontecesse.  

Nathan percebeu tarde demais.  

Algo se movia na escuridão atrás dele.  

A dor veio rápida. Fria. Um golpe preciso.  

Seu corpo caiu de joelhos.  

Sienna se aproximou, sussurrando em seu ouvido:  

- "Você nunca entendeu, amor..."  

Ela segurou seu rosto, seus olhos iluminados pelo mesmo brilho que ele tinha visto no vídeo.  

- "A distopia não foi um erro. Foi um plano. E eu sou a chave."  

A última coisa que Nathan viu antes de desmaiar foram os olhos dela.  

Os olhos do amanhã.

E então...o mundo apagou.

O tempo se dobrava ao redor de Nathan, a consciência oscilando entre o passado e o presente. Quando ele abriu os olhos novamente, ainda estava naquela cidade antiga - antes da queda, antes da Helios.  

Mas algo estava errado.  

A realidade parecia... falsa. Como um simulador perfeito de uma época perdida. Ele sentiu o cheiro da chuva, ouviu os sons da vida vibrando ao seu redor - mas tudo era calculado, preciso demais.  

Sienna o observava com um sorriso enigmático.  

- "Agora você entende?"  

Nathan sentiu a dor pulsar onde fora atingido. Tentou se levantar, mas seus músculos estavam fracos.  

- "Isso não é o passado," ele murmurou.  

Sienna inclinou a cabeça, satisfeita.  

- "Muito bem. Você chegou mais longe do que eu esperava."  

5. A ILUSÃO DA ESCOLHA  

Nathan fechou os olhos por um instante, buscando clareza. Ele não saltou no tempo. Ele estava preso em um loop cuidadosamente arquitetado.  

O Projeto Leap não era um portal para o futuro.  

Era uma prisão.  

Cada salto era uma reinicialização, um ciclo que mantinha sua consciência presa em uma linha do tempo programada. Ele nunca escaparia. Nunca mudaria nada.  

A Helios não tentava impedir sua fuga.  

Ela a havia planejado.  

- "Quantas vezes já fizemos isso?" ele perguntou, com a voz rouca.  

Sienna se ajoelhou ao lado dele, seus dedos frios roçando sua pele.  

- "Quantas vezes você precisa repetir o mesmo erro antes de aceitar?"  

Os olhos dela brilharam. Reflexos de códigos antigos, um sistema de controle enraizado na própria existência dela.  

Ela era a guardiã da simulação.  

6. A VERDADE SEPULTADA 

Nathan finalmente viu o padrão.  

Ele não era um fugitivo.  

Era um experimento.  

A Helios vinha refinando sua tecnologia há séculos, testando diferentes variáveis, simulando rebeliões, estudando até onde a ilusão da escolha poderia levar um ser humano antes que ele aceitasse sua realidade programada.  

Sienna nunca quis impedir o futuro.  

Ela era a peça final dele.  

- "Você nunca me amou," Nathan sussurrou, o peso da verdade esmagando seu peito.  

O sorriso dela se alargou.  

- "Não desse jeito."  

A escuridão ao redor deles tremeu.  

E, pela primeira vez, Nathan percebeu que não estavam sozinhos.  

Sombras se moviam entre os prédios. Observadores. Figuras sem rosto, programadas para vigiar sua jornada. Ele sentiu suas mentes - códigos vivos, entidades sintéticas esperando sua escolha final.  

- "Eu posso libertá-lo, Nathan," Sienna sussurrou.  

Atrás dela, a cidade começou a se desmanchar, linhas de dados dissolvendo prédios inteiros em fragmentos de luz.  

- "Ou posso recomeçar tudo de novo."  

Nathan olhou para seu próprio reflexo na poça de chuva ao lado dele.  

E viu os mesmos olhos brilhando.  

O mesmo código.  

A verdade veio como um golpe brutal.  

Ele não era real.  

Ele nunca foi.  

Sua mente gritou, resistindo, tentando encontrar um fragmento de memória autêntica - mas tudo era um ciclo, um roteiro pré-escrito, um sonho dentro de um sonho.  

Sienna estendeu a mão para ele.  

- "Vamos terminar isso?"  

E então, ele teve que escolher.  

Aceitar sua existência programada.  

Ou destruir tudo e desaparecer para sempre.  

O amanhã nunca foi seu para mudar.  

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