(MOSTRA SP) Crítica | O Filho de Mil Homens - Daniel Rezende cria aqui seu trabalho mais maduro e sincero, um filme que pulsa de ternura e coragem, que se recusa a desistir da beleza.
| Divulgação | Netflix |
• Por Alisson Santos
Há filmes que não precisam gritar para serem ouvidos. O Filho de Mil Homens, de Daniel Rezende, é um desses raros exemplos de cinema que se impõem pela delicadeza, pela lentidão e pela coragem de olhar para o que o mundo costuma ignorar. Baseado no romance homônimo de Valter Hugo Mãe, o filme transforma a prosa poética e existencial do autor português em uma narrativa visual que respira, contempla e se demora nas pausas — como o mar que o protagonista habita.
Rodrigo Santoro interpreta Crisóstomo, um pescador de meia-idade que vive em uma vila litorânea e carrega um sonho simples e impossível; ser pai. Sua vida é marcada pela solidão e pela sensação de estar sempre à margem do mundo. Quando encontra o menino órfão Camilo, um garoto que também busca um lugar de pertencimento, nasce entre eles uma relação de ternura que transcende qualquer laço biológico. É a partir desse encontro que o filme se abre — e o sonho de Crisóstomo se torna o ponto de partida para uma história sobre amor, paternidade e reinvenção.
Daniel Rezende filma com uma calma quase espiritual. A câmera observa mais do que explica. Ela se demora nos rostos, na respiração, no gesto contido, na luz que se move entre o mar e o corpo. O espectador é convidado a sentir o tempo como parte da narrativa. Não há pressa em O Filho de Mil Homens; há silêncio. E é nesse silêncio que o filme encontra sua força. Ele se recusa a seguir a lógica acelerada do cinema contemporâneo e aposta na lentidão como forma de resistência, como gesto de fé na capacidade do público de escutar a vida que pulsa nas entrelinhas.
A fotografia de Azul Serra faz do litoral um espelho da alma. O mar é mais do que cenário — é metáfora do que se busca e do que se perde. O horizonte, sempre distante, traduz o desejo de Crisóstomo; tocar algo que nunca se alcança completamente. Já a montagem, assinada por Marcelo Junqueira, privilegia o respiro, a suspensão, a passagem entre tempos e memórias como se cada lembrança fosse um pedaço de água em movimento.
| Divulgação | Netflix |
Num país e num cinema ainda dominados por masculinidades rígidas, O Filho de Mil Homens ousa ao propor um homem vulnerável, terno e desejoso de cuidar. Crisóstomo não representa a força, mas a delicadeza como força. Seu desejo de paternidade não nasce da falta de uma mulher, mas do transbordamento de afeto — um afeto que não encontra forma social. Rezende, com sutileza, desconstrói a imagem tradicional do provedor e propõe o pai como abrigo emocional. Ao adotar um filho e acolher outros desamparados, Crisóstomo torna-se símbolo de uma masculinidade em reconstrução — feita não de autoridade, mas de escuta. Essa inversão de papéis e expectativas ecoa o espírito do romance de Valter Hugo Mãe, cuja prosa poética sobre “o homem que desejava ser pai” é, antes de tudo, uma ode à empatia.
Rezende filma esses encontros com uma ternura que raramente se vê no cinema brasileiro contemporâneo. Não há sentimentalismo, mas empatia; não há didatismo, mas presença. Ele confia na humanidade dos personagens, e essa confiança transborda para o espectador. O resultado é um filme que fala sobre adoção, mas também sobre adoção emocional; adotar o outro, adotar o mundo, adotar a si mesmo.
Há quem vá achar o filme lento, contemplativo demais, quase imóvel. E é verdade — ele é. Mas essa lentidão é a sua linguagem. Em um tempo que exige urgência, ele oferece pausa. Em uma cultura que idolatra o barulho, ele se atreve a ser silêncio. É um filme que nos pede tempo, e, em troca, nos devolve humanidade.
No fim, O Filho de Mil Homens é menos uma história sobre um pai e um filho e mais uma meditação sobre o que significa pertencer. É sobre pessoas que, por algum motivo, foram deixadas de fora do mundo — e que decidem, juntas, inventar um novo. Um lar não como espaço físico, mas como estado de acolhimento. Daniel Rezende cria aqui seu trabalho mais maduro e sincero, um filme que pulsa de ternura e coragem, que se recusa a desistir da beleza.
O filme foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 27 e 28 de outubro. Estreia oficialmente na Netflix em 19 de novembro.
Avaliação - 8/10
Belíssima análise.
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