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• Por Alisson Santos
Ela acorda. O corpo é um território estranho.
Já não sabe onde acaba e onde começa a entrega, onde termina ela e começa o olhar faminto do outro. No espelho, não há rosto. Só um mapa de fissuras, uma pele que estala em silêncio, pequenos cortes que se abrem invisíveis, feridas que escorrem por dentro, que queimam as entranhas, que consomem o que ainda restava de inteiro.
Ela desliza os dedos sobre a lente do celular,
fria como a morte, como um olho que nunca pisca, uma porta aberta para olhos sempre famintos, que querem mais, sempre mais, não do corpo, mas da carne crua, despedaçada, desfocada em pixels que sangram e gritam em silêncio. Cada clique, cada assinatura, é um pedaço de si que se perde no ar digital, um pedaço que não volta, uma promessa quebrada, uma mercadoria despida de alma, um corpo que se esconde atrás do brilho falso das telas.
O corpo responde, mas não por vontade, responde por obrigação, pelo medo do silêncio, pela fome que a rede impõe. A pele arde, inflama, mas precisa brilhar, sorrir, agradar, a boca se abre e sorri, mesmo que por dentro se rasgue, se despedace. Ela é uma marionete, mas sem cordas visíveis, apenas fios invisíveis que apertam a carne, torcem-na até que chore, até que se desfaça em sombra, em ruído, em silêncio sufocado. A rede não perdoa. Não há espaço para fraqueza, para ausência, para descanso, para o corpo pedir trégua. Quem não dá sangue, não dá lucro, não existe — é descartado, apagado, esquecido.
No quarto escuro, a luz da tela é um sol cruel, uma fornalha que queima a pele, que dissolve as bordas da mente, que rasga o corpo em mercadoria líquida, escorrendo pelos dedos, se perdendo no tempo, afogando-se no vazio dos desejos alheios. Ela se olha, mas não se reconhece. O corpo não é dela, mas de milhares que o tocam sem tocar, de milhares que pagam para possuir um fantasma, uma máscara de prazer, um esqueleto de vontades que ela não sente mais.
Quando as luzes se apagam, quando a câmera desliga, fica a pele — uma pele que não é mais sua, um mapa de dores e promessas quebradas, um território vendido, um espelho rachado onde só vê abismos. Os ossos começam a rachar sob a pressão, a carne se torna vazia, um casco oco, um receptáculo de olhares que a devoraram viva. Ela tenta gritar, mas a voz é um fio de fumaça, se perde antes de sair, um sussurro que não escapa. No silêncio da madrugada, as notificações continuam, uma avalanche implacável, um exército de olhos insaciáveis, um sistema que consome o corpo e cospe o nada.
Ela sente a pele se desprender, não em pedaços físicos, mas na essência, no ser, cada selfie, cada vídeo, uma amputação da alma, um desfalecimento que ninguém vê. Ela não é mais humana. É um produto, uma marca, uma sombra de carne vendida em doses pequenas, um abismo digital que se abre e engole. E o pior não é o corpo vendido, mas o vazio que cresce dentro, uma fome sem fim, um buraco negro que nunca se preenche, um silêncio doído onde antes havia vida. Ela se perde, se esconde, se esquece. E a indústria, faminta e implacável, segue vendendo pele, vendendo sombra, vendendo o nada.
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