Crítica | O Último Azul - Gabriel Mascaro transforma distopia e poesia em um cinema sensível sobre resistência e liberdade na terceira idade.

Divulgação | Vitrine Filmes

• Por Alisson Santos 

Gabriel Mascaro não é um cineasta que se acomoda em terrenos fáceis. Desde Boi Neon até Divino Amor, sua obra vem se debruçando sobre o corpo, a fé, os limites da liberdade e as estruturas invisíveis que moldam a sociedade. Em O Último Azul, ele parece reunir todos esses temas e traduzi-los em um filme que, ao mesmo tempo, é distópico e fabular, político e poético. Trata-se de uma narrativa curta — apenas 86 minutos — mas que carrega um impacto raro, transformando uma crítica social corrosiva em um gesto de delicadeza.

O enredo parte de uma ideia perturbadora; em um Brasil próximo, os idosos são enviados compulsoriamente para colônias isoladas, sob a justificativa de que já não produzem o suficiente para a sociedade. O que poderia soar como alegoria dura e panfletária, Mascaro prefere filtrar pelo lirismo. A protagonista, Tereza, uma mulher de 77 anos que recusa a lógica do descarte, decide fugir para realizar seu último desejo; voar de avião. A jornada não é apenas um ato de fuga, mas de afirmação da vida, uma resistência contra a redução da existência a uma equação de utilidade.

É nesse ponto que o roteiro se distingue. A distopia está sempre presente, mas aparece em filigranas, em detalhes que sugerem mais do que explicam. A história flui como fábula, povoada por encontros breves que, mesmo passageiros, parecem definitivos. Há passagens em que o ritmo desacelera demais, alongando contemplações que podem diluir a tensão dramática, mas ainda assim o tempo narrativo se mantém coerente; o filme respira no compasso da própria protagonista.

Muito do poder da obra recai sobre Denise Weinberg. Sua interpretação mistura humor, indignação e ternura sem jamais se render à caricatura. É raro ver no cinema brasileiro uma personagem idosa construída com tanta complexidade, longe tanto da fragilidade estereotipada quanto da idealização. Weinberg domina cada olhar, cada silêncio, cada gesto de recusa. Rodrigo Santoro aparece em participação contida, mas significativa, como contraponto humano e frágil, sem jamais roubar o protagonismo. E mesmo os personagens secundários surgem com densidade suficiente para sugerir histórias próprias, sinal de um roteiro que não desperdiça figuras de apoio.

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A direção de Mascaro recusa o óbvio. Em vez de realçar a grandiosidade da Amazônia, ele a filma como espaço íntimo, respirável, transformando a floresta em uma personagem cúmplice da fuga. O formato de tela quadrado reforça a proximidade e a sensação de confinamento, ao mesmo tempo que amplia a força simbólica das imagens. A fotografia de Guillermo Garza constrói um sci-fi úmido, texturizado, que não precisa de efeitos grandiosos para evocar futuro; basta o ambiente natural, as cores e a umidade que parecem escorrer da tela. A direção de arte de Dayse Barreto encontra o equilíbrio entre o concreto e o onírico, situando a narrativa em um lugar de ambiguidade; há futuro ali, mas também memória e mito. A montagem, assinada por Sebastián Sepúlveda e Omar Guzmán, aposta na cadência contemplativa, alternando silêncio e fluxo, enquanto a trilha de Memo Guerra acompanha como uma corrente subterrânea, mais fluida do que melódica. O resultado é um filme que recusa o fácil. Chamá-lo apenas de distopia seria limitador; ele também é uma jornada de descobrimento na terceira idade, uma fábula sobre envelhecimento e uma meditação sobre dignidade.

Há fragilidades, é verdade. O ritmo, em alguns trechos, arrisca afastar o espectador mais impaciente. Certos elementos distópicos poderiam ser mais desenvolvidos, já que permanecem apenas sugeridos. Mas, ainda assim, o saldo é avassalador. Gabriel Mascaro consegue falar da exclusão e do etarismo sem recorrer ao cinismo, transformando dor em delicadeza, crítica em poesia. O Último Azul é uma celebração da vida, mesmo diante da morte social imposta; é cinema que denuncia sem gritar, e que emociona sem manipular.

No fim, o filme reafirma algo essencial; resistir também é sonhar. E sonhar, para Tereza, é tão simples e tão grandioso quanto atravessar o céu em um avião. Esse gesto, filmado com a serenidade de quem acredita no poder das imagens, coloca O Último Azul entre os trabalhos mais relevantes do cinema brasileiro contemporâneo — uma obra que não apenas reflete o mundo, mas o reinscreve em azul.

O filme estreia em 28 de agosto nos cinemas.

Avaliação - 8/10

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