Crítica | Ne Zha 2 - Um épico de maturidade rara na animação contemporânea.

Divulgação | A2 Filmes

• Por Alisson Santos 

Poucas continuações conseguem equilibrar ambição estética, densidade narrativa e impacto cultural de forma tão notável quanto Ne Zha 2. A produção chinesa, que já ultrapassou a barreira dos bilhões em bilheteria, é mais do que um fenômeno comercial; é um marco do cinema de animação contemporâneo e um sinal claro de que a hegemonia narrativa e técnica dos estúdios ocidentais começa a ser desafiada de maneira consistente.

O roteiro de Ne Zha 2 se apoia em um alicerce narrativo que exige do espectador conhecimento do filme de 2019. Não se trata apenas de acompanhar personagens já estabelecidos, mas de mergulhar em uma mitologia que se expande sem concessões a explicações redundantes. Isso pode ser um obstáculo para novos públicos, mas também demonstra confiança na inteligência da audiência, uma postura rara no mercado atual, onde simplificações são frequentemente feitas para ampliar alcance.

O enredo, que coloca Ne Zha e Ao Bing dividindo um corpo frágil enquanto enfrentam três provas divinas e desvendam uma conspiração celestial, não se limita a uma estrutura de “jornada do herói”. A narrativa é marcada por camadas políticas claras; quem detém o poder, como se perpetua, como cria inimigos artificiais para justificar violência e como reescreve a história em benefício próprio. É uma animação que discute não apenas destino, mas a manipulação do destino como ferramenta de controle social.

O ponto mais sofisticado está na recusa de reduzir conflitos a um maniqueísmo simplista. Personagens possuem objetivos que se entrelaçam de forma contraditória, revelando ambições pessoais, laços de amizade e disputas políticas que dão ao universo um peso dramático raro. Ao mesmo tempo, o longa constrói reflexões universais; a amizade como resistência, a rebeldia como motor da transformação e o questionamento constante da autoridade.

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Se há um tropeço, ele está no humor. A repetição de tropos com os mesmos personagens interrompe, em momentos cruciais, o fluxo dramático da trama. Embora concebidas para aliviar a tensão, essas pausas diluem o impacto de sequências que poderiam atingir um nível de densidade ainda maior.

Do ponto de vista técnico, Ne Zha 2 impressiona tanto quanto — e em alguns momentos mais do que — as produções de grandes estúdios de Hollywood. O salto em relação ao primeiro filme é notável; a equipe duplicada trouxe refinamento visual em texturas, cenários e coreografias de batalha.

As cenas de confronto, em especial, não são apenas um espetáculo visual, mas desdobramentos dramáticos que revelam camadas psicológicas dos personagens. O uso da partilha de um mesmo corpo entre Ne Zha e Ao Bing é não apenas criativo, mas explorado graficamente com fluidez; movimentos sincronizados, tensões físicas e visuais que materializam o dilema da coabitação e da luta contra um destino imposto.

O design de criaturas, dragões, demônios, imortais, equilibra grandiosidade mitológica e impacto estético moderno, sem se perder em exageros cartunescos. Cada entidade surge com peso simbólico, refletindo tanto a tradição literária chinesa quanto a sofisticação narrativa exigida por um público global.

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O ponto alto, no entanto, está nas batalhas. Coreografadas como óperas visuais, elas transcendem o espetáculo puro e tornam-se momentos de revelação, onde cada golpe, cada explosão de energia, comunica algo sobre identidade, lealdade e poder. A fluidez da animação em larga escala impressiona, mas são os detalhes — expressões faciais, gestos mínimos, a fisicalidade de corpos em constante tensão — que dão ao filme sua densidade emocional.

Ne Zha 2 é uma animação que combina espetáculo e reflexão com rara habilidade. É ao mesmo tempo um épico mitológico e um comentário político sofisticado, que questiona autoridade, destino e poder sem subestimar seu público. Tecnicamente, marca um patamar de excelência para a indústria chinesa e abre caminho para um equilíbrio maior no mercado global de animação.

Apesar do humor repetitivo e das dificuldades de acesso ao primeiro filme, Ne Zha 2 é um triunfo narrativo e visual, e uma das produções mais significativas do gênero nos últimos anos. Se Hollywood muitas vezes acelera sequências para explorar bilheteria, a paciência de cinco anos de desenvolvimento aqui se reflete em cada detalhe; nada parece apressado, nada soa descartável.

Ne Zha 2 estreia em 25 de setembro nos cinemas nacionais.

Avaliação - 8/10

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