Divulgação | Disney+ |
• Por Alisson Santos
O sexto episódio de Alien: Earth, intitulado "A Mosca", é um mergulho perturbador no coração da série e talvez o momento em que Noah Hawley deixa mais claro qual é o verdadeiro propósito desta adaptação da mitologia Alien. O título não é apenas uma homenagem a Cronenberg e ao clássico de 1986, mas um comentário direto sobre a ideia do hibridismo e da identidade dilacerada. Enquanto em A Mosca (1986) a transformação de Seth Brundle era um acidente grotesco que resultava em uma criatura “terceira”, em Alien: Earth os Garotos Perdidos da Terra do Nunca são fabricados justamente para encarnar esse mesmo estado de fronteira, um espaço onde a humanidade não se perde por acaso, mas é retirada de maneira deliberada. O horror corporal de Cronenberg encontra aqui um equivalente filosófico; a experiência da infância roubada pela ciência, a metamorfose não como tragédia natural, mas como cálculo cruel.
O episódio revisita a questão que vem assombrando a temporada; ainda são humanos? A repetição poderia soar desgastada, mas desta vez a resposta é definitiva. A humanidade não é negada às crianças híbridas, mas reafirmada com violência. Ser humano não é apenas uma questão de corpo ou genética, mas de autonomia, memória e luto. Nibs, ao ter suas lembranças apagadas como se fosse um objeto defeituoso, encarna a crítica à lógica burocrática do mal, lembrando as reflexões de Hannah Arendt. O monstro que toma o corpo de uma ovelha e o manipula como fantoche é a versão monstruosa da mesma ideia; a perda de controle sobre si. Ao usar a trilha agressiva de Keep Away, do Godsmack, o episódio coloca a música quase como um comentário sarcástico, uma súplica por autonomia em um mundo onde nenhuma escolha é realmente respeitada.
A morte de Tootles é o golpe mais devastador. Não se trata apenas de um recurso narrativo para chocar, mas da confirmação irrefutável de que essas crianças vivem, sofrem e, sobretudo, podem morrer. A dor do luto coletivo dos Garotos Perdidos é uma cena difícil de assistir, porque retira qualquer abstração da equação. A partir dali, já não importa discutir se eles são humanos ou não; importa apenas reconhecer a brutalidade de seu sofrimento e a covardia do sistema que os transformou em experimento. Se Cronenberg mostrava o terror da metamorfose no corpo de Brundle, Hawley mostra o terror da metamorfose imposta, do corpo sequestrado por ambição e ganância.
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A intertextualidade com Peter Pan reforça a densidade simbólica do episódio. Quando Kavalier lê o trecho de Barrie que diz “dois é o começo do fim”, a frase deixa de ser apenas uma reflexão sobre a perda da inocência infantil e se converte em uma metáfora do hibridismo e da duplicidade que marcam a série. Dois corpos, duas naturezas, duas essências fundidas são o início de uma queda sem retorno. Os Garotos Perdidos, que deveriam simbolizar a infância eterna, são condenados ao contrário; à infância violada, ao crescimento interrompido, à condição de seres sem pertencimento.
Do ponto de vista narrativo, "A Mosca" cumpre com precisão o papel de preparar o terreno para o ato final da temporada. Os personagens são organizados em pares que acenam para futuros choques inevitáveis; Wendy e o jovem xenomorfo, Slightly e Smee, Morrow e Kirsh. Cada dupla reflete a tensão entre controle e afeto, entre sobrevivência e dominação, e anuncia que o clímax não será apenas físico, mas também filosófico. A série, que sempre trabalhou no espaço entre o humano e o alienígena, agora mostra que a verdadeira batalha é pelo significado da palavra “humano” diante de corpos manipulados, memórias apagadas e vidas descartadas.
"A Mosca" não é apenas um capítulo de ficção científica ou terror corporal, mas uma parábola sobre a arrogância de brincar de Deus, sobre o custo de tratar a infância como laboratório e sobre o peso insuportável do luto quando até a dignidade de existir é sequestrada. O episódio afirma com clareza que não há dúvida; os Garotos Perdidos ainda são humanos, mas o verdadeiro monstro é a crença de que humanidade pode ser administrada como propriedade. Ao cruzar Cronenberg com J.M. Barrie, horror corporal com mito infantil, Hawley constrói um dos episódios mais simbólicos e cruéis da franquia, um reflexo direto daquilo que sempre definiu Alien; o corpo como campo de batalha, a perda de autonomia como pesadelo e a morte como lembrança inescapável de que ainda estamos vivos.
O sexto episódio já está disponível no Disney+.
Avaliação - 9/10
Que barbaridade de escrita.
ResponderExcluirA série está muito boa
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