(MOSTRA SP) Crítica | Águias da República - Não é um filme sobre a política do Egito; é um filme sobre o medo como forma de linguagem.

Divulgação | Imovision

• Por Alisson Santos 

Em Águias da República, Tarik Saleh fecha o ciclo iniciado com "O Incidente no Nile Hilton" e "Garoto Dos Céus" com uma obra que é, ao mesmo tempo, sátira, confissão e epitáfio. Se os dois primeiros filmes da chamada “trilogia do Cairo” dissecavam as engrenagens externas da corrupção egípcia — o sistema policial e o religioso — aqui o olhar se volta para dentro, para o espelho do artista, para a cumplicidade estética e moral entre arte e poder. O que Saleh realiza é um movimento de autofagia política e cinematográfica; um filme sobre o cinema enquanto instrumento de servidão, mas também sobre o ego humano que, sedento de reconhecimento, se oferece espontaneamente ao altar da tirania.

Fares Fares, que já havia sido o corpo e o rosto dessa trilogia, volta agora como George, o “Faraó das Telas”, um astro em declínio cuja vaidade é apenas comparável à sua vulnerabilidade. Há algo de trágico e farsesco nesse homem que, tendo envelhecido diante das câmeras, descobre que o teatro político não difere tanto do set de filmagem. Quando o governo o convoca para interpretar o presidente Al-Sisi em uma cinebiografia aduladora, intitulada "A Vontade do Povo", o que se desenrola não é apenas o enredo de um ator coagido, mas a lenta decomposição de uma consciência.

Saleh filma essa descida com ironia cortante, quase cruel. As primeiras sequências — que ridicularizam os bastidores da produção estatal — são de um humor corrosivo; os assessores que exigem que o “presidente cinematográfico” mantenha sua cabeleira, o figurino que transforma o autoritarismo em moda, o set que se torna um santuário da mentira. Tudo é risível até que o riso se torna nervoso. Aos poucos, o espectador percebe que o grotesco não é exagero, mas método; a comédia é apenas o disfarce do horror cotidiano.

O personagem de Fares Fares é um estudo sobre a erosão moral através da vaidade. George começa como alguém relutante, mas sua resistência é moldável. Diante da ameaça ao filho, ele cede. Diante do elogio público, ele se entrega. O desejo de ser amado — o motor secreto de tantos artistas — torna-se aqui uma arma de dominação. É nesse ponto que Águias da República se revela mais devastador que seus antecessores; não há vilão absoluto, apenas um sistema que corrompe porque sabe seduzir.

O roteiro de Saleh evita a exposição óbvia. Dr. Manssour (vivido por um imponente Amr Waked), o enigmático controlador do projeto, representa o Estado como entidade estética — calma, elegante, mas letal. Ele não grita, não tortura diante das câmeras; apenas diz o que precisa ser dito, e o corpo obedece. É nesse contraste entre polidez e terror que o filme encontra seu tom mais afiado. O medo aqui é burocrático, institucional, impessoal.

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Pierre Aim, diretor de fotografia, mantém o olhar clínico, alternando o brilho artificial dos sets com a penumbra dos corredores onde as decisões reais são tomadas. Cada plano parece dividido entre duas luzes; a da ilusão e a da opressão. O resultado é um cinema que, literalmente, se ilumina enquanto apodrece. A direção de arte de Roger Rosenberg complementa essa sensação de decadência disfarçada — palácios, estúdios e salas de projeção se confundem, como se o poder e o espetáculo fossem apenas dois lados de uma mesma tela.

Mas talvez o golpe mais incisivo venha da música discreta de Alexandre Desplat. Longe do tom épico habitual, sua trilha é feita de notas suspensas, de silêncios quase confessionais, como se o próprio filme hesitasse entre a sátira e o lamento. Saleh, afinal, não está rindo de seu país — está chorando por ele, com a amargura de quem já foi expulso por dizer o que pensa.

A partir da metade, Águias da República abandona a ironia e se aproxima do thriller político. O riso cede lugar à paranoia. George, enredado por suas escolhas, acredita ainda poder manipular o sistema, salvar amigos, proteger colegas de elenco. Mas é tarde demais. A proximidade com o poder não o redime — apenas o contamina. 

Ao fechar a trilogia, Saleh constrói um retrato implacável do Egito contemporâneo — e, por extensão, de toda nação onde a arte se torna apêndice do Estado. Águias da República não é um filme sobre a política do Egito; é um filme sobre o medo como forma de linguagem. Quando George se olha no espelho pela última vez, não sabemos se vê um artista ou um fantoche, um homem ou um mito fabricado. E talvez seja essa a questão que Saleh quer deixar suspensa; até que ponto o cinema, em seu desejo de representar o mundo, acaba o reproduzindo exatamente como ele é — mentiroso, autoritário, sedutor.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 19, 22, 24 e 26 de outubro.

Avaliação - 7/10

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