(MOSTRA SP) Crítica | Blue Moon - Um dos filmes mais devastadores e belos do ano.

Divulgação | Sony Pictures

• Por Alisson Santos 

Em Blue Moon, Richard Linklater transforma o crepúsculo da parceria entre Lorenz Hart e Richard Rodgers em uma espécie de elegia sobre o fracasso, a solidão e o cruel descompasso entre talento e felicidade. O filme, que estreou na Mostra de São Paulo, é ao mesmo tempo uma carta de amor e uma autópsia do musical americano — e talvez o retrato mais dolorosamente humano já feito sobre o colapso de uma mente criativa em um mundo que não tolera a vulnerabilidade.

Ethan Hawke, em sua colaboração mais devastadora com Linklater desde "Boyhood: Da Infância à Juventude", interpreta Hart com um magnetismo desconcertante. O ator habita um corpo diminuído — às vezes literalmente, através de truques de câmera que o fazem parecer menor que todos ao redor — e uma alma que se contorce em autodepreciação, sarcasmo e desejo reprimido. Sua performance é uma tapeçaria de contradições; um homem que ri do próprio abismo, um gênio condenado a ser o bufão da própria ruína.

Linklater filma Blue Moon como se fosse uma peça de câmara em constante dissolução. Quase toda a ação se passa em um bar — o lendário Sardi’s — onde Hart, afogado em bourbon e ironia, observa o sucesso do ex-parceiro Rodgers (Andrew Scott, em uma atuação contida e tristemente empática) ecoar do outro lado da rua, na estreia de "Oklahoma!". A ironia é cruel; o musical, símbolo do otimismo americano, nasce do rompimento que destruiu seu autor original. Rodgers avança para a glória; Hart afunda em autodesprezo.

A câmera de Linklater raramente deixa Hart sozinho — mas o isola de forma constante. O bar se torna um purgatório iluminado por néons frios, um espaço suspenso entre o espetáculo e o esquecimento. Cada personagem que entra — o barman compassivo (Bobby Cannavale), o escritor distraído E. B. White (Patrick Kennedy), e principalmente Elizabeth Weiland (Margaret Qualley), a jovem estudante de Yale por quem Hart nutre uma paixão impossível — funciona como reflexo de suas carências.

Qualley interpreta Weiland com uma sensibilidade cruel; sua feminilidade distraída e inconsequente transforma Hart em um confidente sem corpo, um homem a quem se confia segredos, não o amor. A forma como Linklater enquadra os dois — ela sempre iluminada, ele quase na penumbra — revela o abismo entre o desejo e a idealização. A tragédia não é apenas o amor não correspondido, mas o fato de Hart saber que está destinado a vivê-lo assim.

Divulgação | Sony Pictures

Mais do que um drama sobre separação, Blue Moon é um estudo sobre a falência simbiótica entre arte e vida. Linklater, cineasta obcecado pelo tempo, volta a questionar aqui o que resta de nós quando o tempo nos abandona. Hart, o letrista que escreveu “My Funny Valentine” e “The Lady Is a Tramp”, agora é um homem que observa o próprio talento se tornar ruído de fundo em um mundo que prefere o otimismo pasteurizado de "Oklahoma!". Sua homossexualidade reprimida, suas crises de alcoolismo e sua autoironia feroz se entrelaçam em uma espécie de coreografia trágica — uma valsa entre o riso e o colapso.

O roteiro de Robert Kaplow (adaptando sua própria peça) trabalha em ritmo de declínio; os diálogos são afiados, cínicos, mas lentamente vão se desmanchando em confissões e silêncios. O filme não busca grandes clímax, e sim uma lenta e inevitável desintegração. Há uma cena particularmente brilhante — e quase insuportável — em que Hart, bêbado, tenta improvisar versos novos para “Blue Moon” enquanto observa Weiland dançar com outro homem. É o momento em que a canção-título, símbolo de eternidade romântica, torna-se epitáfio. Hawke faz desse instante o ponto de não retorno; a voz falha, o humor ácido dá lugar a uma sinceridade despida. É como se Hart entendesse, de súbito, que sua obra o sobreviverá — mas que isso não é redenção, e sim condenação.

No fim, Blue Moon é menos sobre um artista esquecido e mais sobre o instante em que a arte deixa de salvar quem a cria. É um filme sobre o eco — sobre o som que permanece depois que a música acaba. Poucos diretores conseguiriam equilibrar tanta ternura e crueldade sem cair na autocomiseração. Linklater, com seu olhar paciente e profundamente humano, faz de Blue Moon um réquiem para todos os artistas que viveram brilhando em salões alheios. E Ethan Hawke, em sua melhor atuação desde "Antes da Meia-Noite", entrega um retrato inesquecível de um homem que transforma o fracasso em poesia.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 20, 25, 26 e 29 de outubro.

Avaliação - 9/10

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