(MOSTRA SP) Crítica | Em Outro Lugar à Noite - Um eco de gestos e silêncios que convida o espectador a se entregar ao ritmo da noite e ao som do indizível.

Divulgação | Le Foyer Films

• Por Alisson Santos 

O título Em Outro Lugar à Noite já anuncia o coração pulsante do filme de estreia de Marianne Métivier; a procura por um espaço que não é geográfico, mas existencial. Um lugar que só existe entre o cansaço e o sonho, entre o silêncio e o som, entre o desejo e o desaparecimento. O longa não quer contar uma história linear, mas tatear um estado de espírito — o das mulheres que vivem em suspensão, flutuando entre mundos que já não as acolhem e outros que ainda não se formaram.

O filme se estrutura em fragmentos que ecoam uns nos outros, como ondas que se tocam à distância. Marie, uma artista sonora que vive num recanto rural, parece prisioneira da própria rotina e da inquietude que ela desperta. Sua relação amorosa se desfaz lentamente, como um som que perde força até o silêncio. Noée, uma jovem viajante, surge como um sopro de vida e desordem, perturbando aquele equilíbrio precário. Na cidade, Eva, recém-chegada das Filipinas, atravessa noites insones, à deriva entre dois mundos. Já Jeanne, estudante e pesquisadora, contempla a possibilidade de abandonar tudo — o estudo, o conforto, o que a prende.

Essas quatro figuras não se encontram, mas ressoam. Métivier constrói o filme como um tecido de ecos, em que a vida de uma reverbera na da outra, mesmo sem contato físico. Cada uma é uma variação da mesma inquietude; o sentimento de estar fora do lugar. É um cinema de “entre-lugares”, onde o que importa não é o evento, mas o instante em que ele não acontece — aquele segundo em que algo poderia mudar, mas não muda.

A noite aqui não é apenas cenário, mas matéria dramática. Ela é o tempo das personagens, o espaço onde a lógica se dissolve e o que resta é o impulso de seguir, de sentir, de escutar. Métivier filma a noite como um corpo vivo, feito de respiração e espera. As sombras não escondem, mas revelam o que o dia mascara; as fissuras do afeto, a solidão, o ruído interno.

A fotografia de Ariel Méthot, com o formato 1.66:1 e o uso da câmera Alexa Mini, dá textura à escuridão — não uma ausência de luz, mas uma presença de densidade. Cada plano parece respirar devagar, como se o tempo se expandisse até se tornar palpável. Não há pressa, nem intenção de resolução. Há apenas o instante que insiste em durar.

E é justamente na duração que o filme encontra sua beleza. Em Outro Lugar à Noite é um filme que exige paciência — mas, mais do que isso, exige escuta. O trabalho sonoro é a verdadeira espinha dorsal da obra; ruídos de insetos, o motor distante de um carro, vozes que se cruzam, o farfalhar do vento nas folhas. O som é o fio invisível que conecta personagens e espaços, transformando o inaudível em gesto narrativo.

Eva, a personagem filipina, traz à tona o tema da migração. Mas Métivier evita o discurso direto; não há didatismo nem sociologia explícita. Em vez disso, ela transforma a experiência de deslocamento num estado metafísico — o estar longe, o ser estrangeira de si mesma. Eva vagueia pela cidade não em busca de pertencimento, mas de ressonância. É como se tentasse ouvir o eco da própria voz num território que não responde.

Divulgação | Le Foyer Films

Já Marie, com sua pesquisa sonora, simboliza o processo criativo como forma de tentativa — gravar, recompor, repetir, ouvir o vazio. Há algo de profundamente autorreferencial aqui; o trabalho dela reflete o da própria diretora, que parece também escutar o mundo em busca de um ritmo que revele o invisível.

O cinema de Métivier se aproxima do de Apichatpong Weerasethakul e Naomi Kawase, mas com uma identidade própria; o som como memória. Não há trilha sonora que conduza emoções; há o ambiente como personagem. A narrativa não se impõe, ela se insinua. Cada corte é uma respiração, cada pausa é um olhar que se prolonga até o incômodo.

Em um momento emblemático, Marie escuta uma gravação feita ao acaso — ruídos indistintos que, ao serem reproduzidos, parecem conter vozes que não deveriam estar ali. Não é um filme de fantasmas, mas há um fantasma do som, uma presença que só se manifesta quando o silêncio se rompe. Métivier nos faz sentir que o real é poroso, que as fronteiras entre o audível e o invisível se confundem.

É inegável, porém, que o filme corre riscos. Sua estrutura fragmentada pode gerar certa dispersão emocional. As personagens são mais símbolos do que pessoas — vetores de sensações, não sujeitos com arco dramático tradicional. Há quem veja nisso frieza, uma distância estética que dificulta o envolvimento. Mas esse é também o ponto de força da obra; ela se recusa a ser narrativa, prefere ser experiência.

O ritmo, por vezes, se aproxima da imobilidade. Longos planos de campos vazios, o som do vento, uma espera que não se resolve. Para alguns, será contemplação; para outros, tédio. Métivier aposta alto ao fazer um cinema que não quer agradar, mas desacelerar. É um filme que nos força a olhar para o invisível — e nem todos estão dispostos a isso.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 20, 21 e 22 de outubro.

Avaliação - 7/10

Comentários