(MOSTRA SP) Crítica | Era uma Vez em Gaza - Um cinema que ousa divertir onde o mundo só permite lamentar, que encontra ironia onde o discurso só admite dor.

Divulgação | The Party Film Sales

• Por Alisson Santos 

Há algo de profundamente subversivo em ver um filme ambientado em Gaza começar como um western. Era uma Vez em Gaza, dos irmãos Tarzan e Arab Nasser, não tenta apenas narrar uma história; ele a encena dentro de uma miragem, como se o deserto do Velho Oeste tivesse migrado para o Mediterrâneo e a poeira das explosões substituísse o vento sobre os cactos. A escolha não é gratuita. O filme é, antes de tudo, um gesto de apropriação — do mito, do gênero e da imagem. Se Gaza é constantemente filmada por outros, aqui ela se filma a si mesma.

Os irmãos Nasser transformam a Faixa de Gaza em um território de invenção cinematográfica, e não de piedade. Desde o prólogo — um colagem de bombardeios reais entremeada pela voz de Donald Trump anunciando seu plano delirante de transformar a região em uma “Riviera” — o filme confronta o espectador com a impossibilidade de separar ficção e realidade. A ironia é tão aguda que parece uma bofetada. E é justamente nesse abismo entre o horror real e o artifício cinematográfico que o longa ergue sua força.

Mas o que surpreende é que, depois dessa abertura, Era uma Vez em Gaza mergulha deliberadamente na narrativa clássica de um filme de faroeste. Osama (Majd Eid, num papel magnético) é um taxista de fala afiada e moral flexível que trafica drogas escondidas em falafels — um truque tão grotesco quanto genial. Ao seu lado, Yahya (Nader Abd Alhay), um jovem ingênuo e tímido, tenta sobreviver às restrições impostas pela ocupação israelense. Quando a parceria se desfaz e a lealdade se transforma em traição, a história se metamorfoseia num duelo moral, um embate entre o anti-herói e o idealista, entre a sobrevivência e a pureza perdida.

Ramzi Maqdisi, interpretando o policial corrupto Abu Sami, injeta na trama a dose necessária de ambiguidade. Seu personagem é o xerife demoníaco de um território sem lei — uma figura que, em outro contexto, poderia estar cavalgando ao pôr do sol. Aqui, no entanto, ele percorre as ruínas de Gaza, onde cada beco é uma fronteira e cada ruído de helicóptero soa como um presságio de morte.

Os Nasser operam com o que o cinema tem de mais raro; a coragem de ser popular sem ser simplista. Era uma Vez em Gaza não busca piedade, nem denúncia explícita. O filme respira dentro do absurdo cotidiano, revelando que a banalidade da sobrevivência também é uma forma de resistência. Não há heroísmo — há apenas pessoas tentando viver, traficar, amar, rir e mentir enquanto o mundo desaba em volta.

Visualmente, o longa é impecável. A fotografia alterna entre o calor estourado das ruas e os tons crepusculares dos interiores, criando uma textura que evoca tanto o realismo sujo de William Friedkin quanto o fatalismo romântico de Sergio Leone. O título, aliás, é mais do que uma homenagem; é uma ironia amarga. Assim como Leone reinventou o faroeste para falar da América perdida, os Nasser reinventam o cinema de gênero para falar de uma Gaza que o mundo insiste em não ver.

Divulgação | The Party Film Sales

Há uma virada brilhante na metade do filme, quando Yahya é escolhido para atuar em um filme de propaganda do Hamas. O jogo entre ator e personagem, entre ficção e identidade, torna-se o coração conceitual da obra. Yahya, ao encarnar um herói fictício, começa a acreditar em sua própria lenda — e, paradoxalmente, é nesse gesto ilusório que o filme encontra sua verdade. A fronteira entre representação e existência se dissolve. É o cinema como forma de sobrevivência; quando não se pode viver, resta interpretar.

Ambientado em 2007, pouco após o bloqueio imposto a Gaza, o filme nunca sublinha o contexto político, mas ele está em cada plano. O bloqueio, a corrupção, o tráfico, as fronteiras invisíveis, a economia da escassez — tudo isso surge como ruído de fundo, moldando os gestos dos personagens. É nesse detalhe que o trabalho dos Nasser se distingue do panfleto; eles não filmam a Palestina como mártir, mas como palco do trágico humano universal.

Ao mesmo tempo, Era uma Vez em Gaza é, inevitavelmente, um testemunho. Mesmo vivendo em exílio, entre Jordânia e França, os cineastas tratam o cinema como um arquivo emocional. Filmam pacotes de cigarros, falafels embrulhados em jornais, táxis enferrujados, vitrines quebradas — tudo aquilo que, fora do noticiário, constitui o pulso de uma cidade. “Não fazemos apenas filmes”, disseram em entrevistas. “Criamos um arquivo cinematográfico de Gaza.” E o fazem com ternura, melancolia e raiva contida.

O resultado é um filme que desafia a lógica da representação sobre o Oriente Médio. Enquanto o mundo se acostuma a ver Gaza como ruína, os Nasser a mostram como ficção — e, paradoxalmente, é nesse artifício que ela recupera sua humanidade. O faroeste, gênero da conquista e da fronteira, aqui é revertido em elegia; um povo sitiado filmando o próprio cerco com o olhar de quem ainda sonha com liberdade.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 19, 20, 22 e 27 de outubro.

Avaliação - 9/10

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