(MOSTRA SP) Crítica | Foi Apenas um Acidente - Um filme que nasce do trauma, mas que recusa a vitimização; que se ergue contra o autoritarismo, mas sem jamais abandonar a complexidade da alma humana.

Divulgação | MUBI

• Por Alisson Santos 

Há algo de quase milagroso na simples existência de Foi Apenas um Acidente. Depois de anos de proibições, prisões e silenciamentos, Jafar Panahi retorna com um filme que não é apenas um gesto de resistência, mas um ato de transcendência. É cinema puro — político sem ser panfletário, tenso sem ser espetacular, ético sem ser moralista. Um filme que nasce do trauma, mas que recusa a vitimização; que se ergue contra o autoritarismo, mas sem jamais abandonar a complexidade da alma humana.

Panahi sempre foi um cineasta obcecado por fronteiras — entre o real e o ficcional, entre o indivíduo e o Estado, entre a arte e o interdito. Desde "O Espelho" (1997), sua obra tem desafiado a linearidade narrativa e a autoridade da própria imagem. Mas em Foi Apenas um Acidente, há algo diferente; um retorno ao drama direto, ao suspense clássico, sem abrir mão da densidade moral e do humor corrosivo que sempre o acompanharam. Se em "No Bears" (2022) o cineasta explorava o medo e a culpa sob o olhar da vigilância, aqui ele se volta para as ruínas íntimas da vingança — e o faz com uma energia quase juvenil, como se o exílio interno tivesse reavivado a chama de um contador de histórias essencialmente popular.

O filme se abre com um plano-sequência noturno, uma família numa estrada escura, uma criança sonhando com o futuro e um pai distraído pelo rádio. Em poucos minutos, Panahi captura a banalidade da esperança — e a destrói com um ruído seco, o impacto de um acidente que, como o título sugere, é apenas o início. É uma cena que ecoa tanto "Psicose" quanto "Crimson Gold", o cotidiano interrompido pelo infortúnio, o gesto trivial que se torna o estopim do abismo.

O protagonista, Vahid (interpretado com uma contenção brilhante por Vahid Mobasseri), é um mecânico que carrega nas costas o peso das prisões políticas e na pele as cicatrizes deixadas por um juiz brutal. Quando acredita reconhecer esse homem — agora supostamente livre e impune — o acaso se transforma em fúria moral. O acidente se converte em metáfora; o encontro fortuito entre o passado e o presente, entre o oprimido e seu opressor, entre a justiça e o desejo de punição.

Panahi constrói esse dilema com precisão de relojoeiro. O filme alterna momentos de tensão com intervalos de humor agridoce, especialmente quando Vahid se alia a um grupo improvável de ex-prisioneiros em busca de desforra. O que começa como uma cruzada de vingança vai gradualmente se transformando numa tragicomédia moral, onde cada gesto é contaminado pela dúvida; é possível vingar-se sem reproduzir o mesmo ciclo de violência que se deseja quebrar?

Essa questão — simples e devastadora — atravessa toda a obra. Em um de seus diálogos mais agudos, um dos personagens pergunta: “Se a injustiça é o ar que respiramos, o que nos resta fazer para continuar vivos?”. Panahi não responde. Ele apenas observa, com uma câmera paciente, o modo como o desejo de justiça pode se corromper na ânsia por equilíbrio.

Divulgação | MUBI

Como em seus melhores momentos, o diretor recorre à estrutura de um “road movie” para falar de algo maior; o deslocamento ético de um povo que vive entre a submissão e a rebelião. A estrada, nesse caso, é o espelho de uma nação que não sabe onde termina a obediência e começa o crime. Foi Apenas um Acidente é uma viagem que se perde de propósito — porque o destino é menos importante do que o percurso moral dos seus personagens.

Há também um lirismo inesperado que se infiltra entre os escombros do drama. Panahi filma os rostos com uma delicadeza que beira o perdão, e há ternura mesmo na violência. Cada personagem, por mais corrompido ou hesitante, carrega um resquício de humanidade que o cineasta insiste em preservar. Essa insistência é, talvez, seu maior gesto político; a recusa em desumanizar, mesmo os carrascos.

Visualmente, o filme é um primor de simplicidade. A fotografia aposta na penumbra, em contrastes de luz que parecem extraídos da memória — como se cada cena fosse uma lembrança vacilante prestes a se apagar. O uso do som é igualmente notável; o silêncio de uma pausa, o chiado de um rádio, o ranger de um portão se tornando símbolos de uma vigilância invisível. Há, especialmente nos dois longos planos-sequência (o da abertura e o do final), um domínio absoluto da mise-en-scène. O segundo, em particular, é de partir o coração — um exercício de empatia que encerra o filme não com justiça, mas com dúvida.

Na sessões da Mostra de São Paulo, Foi Apenas um Acidente foi saudado como um manifesto pela liberdade de expressão. E é, sim. Mas seria injusto reduzi-lo a isso. O filme não é apenas uma resistência política — é uma meditação profunda sobre culpa, acaso e responsabilidade. É sobre o que fazemos quando não há mais leis que nos protejam, nem moral que nos guie. Panahi responde filmando. Porque, para ele, filmar é o último refúgio possível da verdade.

No fim das contas, o título ressoa com amarga ironia. Nada em Foi Apenas um Acidente é “apenas” um acidente. Cada gesto, cada olhar, cada escolha — do cineasta e de seus personagens — carrega o peso de um país inteiro tentando se lembrar do que é ser livre. E, paradoxalmente, talvez esse seja o filme mais livre de Panahi. Um cinema feito sem permissão, mas com plena consciência; clandestino, mas iluminado por uma fé inabalável na arte como forma de sobrevivência.

O filme foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 27, 28 e 29 de outubro.

Avaliação - 9/10

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