(MOSTRA SP) Crítica | A Memória do Cheiro das Coisas - Um filme de silêncio e arrependimento, onde o tempo cheira a poeira e lembrança, e o passado nunca deixa de respirar.
| Divulgação | Muiraquita Filmes |
• Por Alisson Santos
Há filmes que não buscam contar uma história, mas exalar uma lembrança. A Memória do Cheiro das Coisas, novo trabalho do português António Ferreira, é um desses raros exemplares — um cinema que não se vê com os olhos, mas se sente na pele. Com uma delicadeza quase cruel, o diretor transforma a decadência da velhice e o peso da culpa histórica em matéria poética, onde cada silêncio, cada cheiro e cada olhar carregam o fantasma de um passado que se recusa a morrer.
O protagonista, Arménio (José Martins, em atuação monumental), é um veterano da guerra colonial portuguesa que, aos 80 anos, é levado à força para um lar de idosos. O ambiente claustrofóbico, de corredores brancos e janelas pequenas, contrasta com a vastidão das lembranças que o assombram. Lá, ele conhece Hermínia (Mina Andala), sua cuidadora, uma mulher negra cuja presença devolve à superfície tudo o que ele tentou apagar — o racismo velado, a violência esquecida, a desumanidade travestida de patriotismo.
Ferreira filma a velhice como um campo de batalha. Os enquadramentos são meticulosamente lentos, quase imóveis, como se o tempo tivesse se tornado uma prisão. E, dentro dessa prisão, o cheiro — sim, o cheiro — é a chave que abre as celas da memória. O título não é um ornamento poético; é o cerne da narrativa. Arménio lembra-se das coisas não pelo que viu, mas pelo que sentiu. O odor da terra molhada em Angola, o perfume das cartas queimadas, o suor do medo — tudo o que o filme evoca, e não mostra, tem mais força do que qualquer flashback explícito.
Essa escolha estética aproxima A Memória do Cheiro das Coisas de um cinema literário, mais próximo de Marguerite Duras ou Alain Resnais do que de um drama convencional. Ferreira não entrega respostas, não explica contextos, não facilita. O filme pede entrega — e paciência. Sua narrativa fragmentada, por vezes quase imóvel, pode cansar o espectador apressado, mas recompensa quem aceita vagar com o protagonista pelos labirintos da memória.
A relação entre Arménio e Hermínia é o eixo emocional da obra, mas está longe de qualquer sentimentalismo. Não há redenção fácil aqui. Há empatia, há atrito, há silêncios. Hermínia é a figura que encarna a vingança do esquecido — mas sem violência. É a presença viva do que foi oprimido, uma lembrança humana que não se apaga. Quando Arménio a observa, é como se o próprio passado o observasse de volta.
| Divulgação | Muiraquita Filmes |
A fotografia de Leandro Valente reforça essa sensação de aprisionamento sensorial; sombras densas, planos longos, texturas que quase se podem tocar. O som, por sua vez, é outro protagonista — o ruído do vento, o ranger de portas, o som abafado de respirações tornam-se ecos da guerra que ainda ressoa dentro dele. A ausência de música, em muitos momentos, pesa mais do que qualquer trilha.
Mas A Memória do Cheiro das Coisas não é um filme sobre guerra, e sim sobre o que resta dela. Sobre o corpo que envelhece, a mente que se repete, o passado que se infiltra em tudo. O lar de idosos, nesse sentido, é metáfora de Portugal — um lugar que tenta esconder seus fantasmas entre paredes limpas, mas cujo cheiro de esquecimento insiste em escapar pelas frestas.
Se há algo que impede o filme de alcançar a perfeição, é talvez sua própria contenção. A densidade, em certos trechos, flerta com a imobilidade; a metáfora olfativa, tão potente no início, se repete a ponto de perder um pouco da sutileza. Ainda assim, é um pecado menor diante da coragem estética e moral de Ferreira — um cineasta que ousa falar da guerra colonial não com armas, mas com cheiros, memórias e o peso da respiração de um velho homem tentando existir.
O filme foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 19, 20 e 24 de outubro.
Avaliação - 7/10
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