(MOSTRA SP) Crítica | A Morte Não Existe - Dufour-Laperrière oferece um espelho para o desespero de uma geração que quer salvar o planeta, mas já não acredita na humanidade.

Divulgação | Best Friend Forever

• Por Alisson Santos 

Há algo de profundamente inquietante na forma como A Morte Não Existe, de Félix Dufour-Laperrière, transforma a animação em linguagem revolucionária — não apenas no sentido político, mas existencial. O longa canadense-francês não se contenta em narrar a rebeldia de um grupo de jovens contra a elite e o colapso ambiental; ele propõe, de maneira poética e alucinada, a destruição da própria ideia de finitude. Dufour-Laperrière não dirige um filme; ele convoca um ritual, uma elegia insurgente que dissolve os contornos entre vida e morte, entre ideologia e fé.

Em sua superfície, A Morte Não Existe acompanha um grupo de jovens revolucionários que, cansados da inércia social, planejam atacar uma propriedade aristocrática. Mas reduzir o enredo a esse gesto seria amputar sua alma. O filme se passa em um espaço que parece existir entre o real e o etéreo — uma floresta viva, cambiante, quase respirando, onde as cores se comportam como emoções. A líder, Manon, guia seus companheiros com uma convicção que mistura mística e desespero. A mais frágil do grupo, Hélène, hesita, e sua recusa em atirar se torna o ponto de fratura; o instante em que a revolução revela sua natureza espiritual.

Dufour-Laperrière cria um universo em que a natureza se vinga, mas não como catástrofe natural — e sim como consequência ética. A terra se parte, os pássaros mortos ressuscitam, o tempo retrocede. Tudo o que é morto retorna, não como zumbi, mas como metáfora daquilo que o ser humano tentou enterrar; sua própria consciência.

Visualmente, o filme é uma experiência quase hipnótica. O traço de Dufour-Laperrière, já conhecido por seu lirismo em "Ville Neuve" (2018), aqui se expande em um delírio pictórico. As linhas oscilam, os tons se dissolvem, e a câmera desenhada parece flutuar entre a abstração e o figurativo. Há momentos em que o filme se torna pura pintura em movimento — lembrando Tarkóvski e Terrence Malick mais do que Disney ou Miyazaki.

Mas o que mais impressiona é o modo como o diretor usa o minimalismo sonoro para sugerir grandiosidade. Não há trilha épica, nem discursos inflamados; há respirações, o farfalhar das folhas, o ruído do sangue que volta a circular. A violência — tiros, sangue, queda — aparece como gesto coreográfico, quase ritualístico. O sangue é cor de caramelo, não por estética, mas para negar o realismo; Dufour-Laperrière quer lembrar que a animação, ao contrário do cinema tradicional, não representa o mundo — ela o reinventa.

Divulgação | Best Friend Forever

O grande acerto de A Morte Não Existe é transformar um filme político em fábula metafísica. Os jovens de Manon acreditam lutar contra os ricos, mas o verdadeiro inimigo é a mortalidade — a consciência de que toda utopia termina. Ao desafiar a morte, eles desafiam o tempo. O terremoto final, com a terra engolindo as cidades e devolvendo os corpos à vida, é mais que uma catástrofe; é o reinício do ciclo, uma revolução cósmica.

Essa escolha narrativa confere ao filme uma densidade simbólica rara. É como se Dufour-Laperrière dissesse que toda revolta humana é, no fundo, um pedido de imortalidade. Ao mesmo tempo, há um lamento naquilo tudo; uma sensação de que esses jovens, mesmo renascidos, permanecerão presos ao mesmo erro — o de acreditar que o mundo pode ser purificado pelo fogo.

Há ecos de filosofia existencial em cada diálogo sussurrado, em cada pausa contemplativa. A Morte Não Existe poderia muito bem ser uma parábola escrita por Camus, ilustrada por mãos surrealistas e musicada por um silêncio que fala. O filme é melancólico, mas não cínico. Ele acredita na possibilidade de um novo começo, ainda que esse começo precise nascer da ruína.

Em tempos de crises climáticas e descrença generalizada, Dufour-Laperrière oferece um espelho para o desespero de uma geração que quer salvar o planeta, mas já não acredita na humanidade. E o faz sem moralismo, sem panfleto, com a serenidade de quem entende que toda extinção é também uma forma de transformação.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 23, 24, 26 e 30 de outubro.

Avaliação - 8/10

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