(MOSTRA SP) Crítica | Pai Mãe Irmã Irmão - Jarmusch, mais uma vez, nos convida a ouvir o que não é dito. E, nesse gesto, talvez tenha feito o mais bonito dos filmes sobre a solidão compartilhada.
| Divulgação | MUBI |
• Por Alisson Santos
Há algo de quase espiritual na forma como Jim Jarmusch aborda o silêncio. Seus filmes sempre pareceram se desenrolar entre frases, entre gestos mal concluídos, entre olhares que não encontram resposta. Pai Mãe Irmã Irmão não foge dessa tradição; é um filme que existe no intervalo — entre o que se diz e o que se cala, entre a ternura e o constrangimento, entre o riso e o arrependimento que o acompanha. É, talvez, o mais humano dos filmes recentes de Jarmusch, justamente por ser o menos “importante”, no sentido de ambicionar pouco além do essencial; olhar de perto o que nos torna uma família, mesmo quando já não sabemos mais como conversar com quem amamos.
Dividido em três histórias autônomas, o filme propõe um mosaico afetivo sobre os elos que resistem — e os que se rompem — no tempo e no silêncio. A primeira vinheta, passada na Nova Jersey rural, mostra dois irmãos (Adam Driver e Tom Waits) visitando o pai adoecido. O encontro, inicialmente banal, se transforma num espelho da distância emocional que cresce com os anos e que só a doença é capaz de encurtar. A segunda, situada em Dublin, gira em torno de uma mãe (Charlotte Rampling) que tenta impor um ritual de chá anual às filhas (Vicky Krieps e Indya Moore), cada uma orbitando o mundo à sua maneira, entre a culpa e a revolta. Já a terceira história, em Paris, é talvez a mais dolorosa; irmãos limpando o apartamento dos pais mortos, entre caixas de lembranças, risadas nervosas e a percepção de que toda memória é, em última instância, uma forma de perda.
Jarmusch, veterano em transformar o banal em filosofia, faz de Pai Mãe Irmã Irmão um laboratório do incômodo. Cada diálogo parece calculado para se interromper antes do conforto — como se o diretor quisesse que o espectador sentisse o mesmo desconforto dos personagens. As pausas se tornam mais expressivas que as palavras — composta por interiores fechados, planos longos e uma fotografia quase ascética — reforça a sensação de estarmos presos àquelas salas, ouvindo conversas que deveríamos talvez não ouvir. É o cinema do constrangimento elevado à arte, mas também um raro exercício de ternura; Jarmusch ama suas criaturas, mesmo quando elas não sabem amar umas às outras.
Há, aqui, uma pureza de forma que remete aos primeiros trabalhos do diretor, como "Estranhos no Paraíso" e "Paterson". Se nesses filmes o olhar era voltado para o estranhamento do cotidiano, em Pai Mãe Irmã Irmão o foco é o espelhamento emocional — o desconforto de se ver refletido naqueles que partilham o mesmo sangue. O humor, sempre peculiar em Jarmusch, continua presente, mas diluído em uma doçura quase melancólica. É um filme gentil, mas não ingênuo; leve, mas cheio de rachaduras sutis.
| Divulgação | MUBI |
O elenco é um espetáculo à parte. É raro ver tantos nomes lendários reunidos em papéis tão despretensiosos; Cate Blanchett, Mayim Bialik, Tom Waits, Charlotte Rampling, Adam Driver, Indya Moore e Vicky Krieps se revezam em pequenas joias de interpretação contida. Ninguém rouba a cena porque não há cenas para roubar — tudo é construído em função da harmonia, da escuta, do tempo. Blanchett, por exemplo, surge por poucos minutos, mas sua presença paira sobre o filme como um eco distante de afeto. Já Waits, com seu olhar cansado e voz cavernosa, carrega a primeira história com uma vulnerabilidade que só um ator íntimo do silêncio poderia oferecer.
Há quem possa achar o filme “pequeno” — e, de fato, ele é. Não há grandes arcos narrativos, nem reviravoltas dramáticas. Mas o minimalismo de Jarmusch é menos uma limitação e mais um método. Ele reduz o mundo até que caiba em uma sala de estar, em uma mesa de chá, em um gesto hesitante. Através dessa economia, o filme se torna quase musical, onde cada pausa é uma nota, cada silêncio, um acorde. O título, aparentemente óbvio, revela-se simbólico; Pai Mãe Irmã Irmão — as categorias primordiais que moldam quem somos, mas que também delimitam o quanto podemos escapar de nós mesmos.
O resultado é uma obra que parece feita de respirações. Jarmusch observa o cotidiano familiar com a paciência de quem já entendeu que as relações humanas não se resolvem, apenas se repetem em novos tons, novos silêncios. Ele não julga, não explica, não dramatiza. Apenas filma — e, ao filmar, transforma o banal em poesia.
Ao final, Pai Mãe Irmã Irmão é menos um filme sobre famílias do que sobre a fragilidade do contato humano. Um retrato da tentativa — eterna e falha — de comunicar-se. É um filme sobre como, por vezes, amar alguém é simplesmente suportar o silêncio ao lado dessa pessoa.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 23, 27 e 30 de outubro.
Avaliação - 10/10
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