(MOSTRA SP) Crítica | Quem Ainda Está Vivo - Não é apenas uma crônica da destruição de Gaza, mas o esboço de um território que persiste, invisível, dentro da memória.

Divulgação | Akka Films

• Por Alisson Santos 

Em Quem Ainda Está Vivo, o cineasta suíço Nicolas Wadimoff constrói uma obra que é menos um documentário e mais um exorcismo coletivo. No centro, nove refugiados palestinos — intelectuais, artistas, estudantes — encontram, diante da câmera, um raro espaço de escuta. O que emerge dessas vozes não é apenas a crônica da destruição de Gaza, mas o esboço de um território que persiste, invisível, dentro da memória.

Wadimoff recusa o espetáculo da dor. Em um tempo em que a guerra é transmitida como fluxo incessante de imagens, ele faz o movimento contrário; retira a visão para devolver o sentido da palavra. Num cenário que remete a "Dogville" (2003), um mapa de Gaza é desenhado com tinta branca sobre um chão negro. As cidades são quadrados, os espaços são ausências. Dentro desse vazio, as vozes preenchem o que restou — lembranças de ruas, de árvores, de janelas. São narrativas que os sobreviventes recitam não para explicar, mas para continuar existindo.

O minimalismo formal — luzes rarefeitas, ausência de imagens de arquivo, enquadramentos contidos — não é um exercício estético gratuito, mas um gesto político. Ao apagar o ruído do mundo, Wadimoff nos força a enfrentar aquilo que o olhar distraído tende a rejeitar; a humanidade que sobrevive ao extermínio. Cada palavra dita é uma recusa à redução dos corpos a estatísticas. Cada pausa é um grito silencioso contra o apagamento.

Entre os protagonistas, há uma tensão que estrutura o filme; alguns desejam esquecer Gaza, como quem arranca uma ferida para sobreviver; outros insistem em preservar cada fragmento, como quem guarda uma língua em ruínas. Wadimoff não julga nenhum dos dois impulsos — registra-os como faces da mesma resistência. O resultado é uma espécie de liturgia da memória, em que lembrar torna-se uma forma de lutar.

Divulgação | Akka Films

Rodado na África do Sul — um país que, por ironia e solidariedade histórica, ainda permite a entrada de palestinos sem visto — o filme adquire uma camada simbólica poderosa. O espaço da filmagem é também um espaço de exílio, transformando esse deslocamento em metáfora; Gaza reaparece ali, traçada sobre o chão estrangeiro, como um mapa de pertencimentos que só existem na lembrança.

Quem Ainda Está Vivo é um filme austero, mas de uma beleza moral rara. Sua força não está nas lágrimas, mas na compostura. Wadimoff compreende que a emoção mais verdadeira nasce da dignidade — e é essa dignidade que resiste diante da câmera. O título não é uma pergunta retórica; é um desafio. Quem Ainda Está Vivo? A resposta, silenciosa, vem do ato mesmo de contar.

No fim, o filme é menos sobre a morte de um povo do que sobre sua persistência em existir através da palavra. E quando as luzes se apagam, a pergunta ecoa não apenas sobre Gaza, mas sobre nós — sobre o que resta de humano em quem escolhe ouvir.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 20, 23, 24 e 25 de outubro.

Avaliação - 9/10

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