(MOSTRA SP) Crítica | Sorry, Baby - É o cinema da ferida que cicatriza torta, da risada que vem na hora errada, do amor que reaparece tímido, mas ainda possível.
| Divulgação | A24 |
• Por Alisson Santos
Há filmes que tentam nomear o trauma — dar-lhe contorno, fazer dele algo que possa ser examinado sob a luz fria da razão. Sorry, Baby, estreia de Eva Victor na direção, faz o oposto; mergulha no silêncio que vem depois da explosão, no ar rarefeito que sobra quando a dor já não grita, mas ainda habita o corpo. É um filme sobre a vida após a coisa ruim — e, mais importante, sobre a tentativa de continuar vivendo com ela, mesmo quando o mundo exige que se siga em frente.
Eva Victor interpreta Agnes, uma professora que retorna à sua antiga universidade com um cargo que simboliza conquista, mas que também a obriga a revisitar os fantasmas de seu passado. O reencontro com Lydie (Naomi Ackie), amiga e contraponto emocional, desperta lembranças de um tempo em que Agnes acreditava no mérito, na inocência do olhar acadêmico — até que um professor carismático, Decker (Louis Cancelmi), transforma essa fé em ruína. A partir daí, Sorry, Baby se estrutura como uma arqueologia afetiva; o presente e o passado se sobrepõem em camadas, como se Agnes ainda não tivesse decidido em qual tempo habitar.
O que torna o filme de Eva tão singular é sua recusa em seguir as convenções do drama sobre trauma. Não há catarse nem redenção fácil. Em vez disso, há humor — um humor deslocado, estranho, que brota das fissuras. O riso, aqui, não é negação, mas uma forma de sobrevivência. É o riso que surge quando alguém tenta retomar uma rotina banal, quando o absurdo da burocracia se mistura à dor íntima, quando a terapia falha, e resta apenas ironizar o caos.
A comédia de Eva, portanto, é uma forma de resistência. Suas piadas — meio secas, meio hesitantes — são pontes frágeis lançadas sobre o abismo da vergonha, do medo e da memória. Há ecos de Phoebe Waller-Bridge (Fleabag) e de Greta Gerwig (Frances Ha), mas Sorry, Baby vai mais fundo; o filme encontra graça no desconforto, não como pose, mas como modo de respirar.
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Naomi Ackie, como Lydie, oferece à narrativa um equilíbrio essencial. Sua presença ilumina o contraste entre o passado e o presente de Agnes; é ela quem traduz a possibilidade de afeto, de cuidado, mesmo quando tudo parece ter se tornado cínico. Já Lucas Hedges, no papel de Gavin — um vizinho bem-intencionado, porém limitado —, encarna o retrato dos homens que “tentam entender”, mas cujo esforço ainda carrega o peso do privilégio.
Visualmente, o longa é melancólico e acolhedor ao mesmo tempo. A fotografia de Mia Cioffi Henry transforma o campus universitário da Nova Inglaterra num labirinto de tons frios, onde cada esquina parece guardar uma lembrança reprimida. O figurino de Emily Constantino, com seus suéteres folgados e jaquetas infladas, reforça essa sensação de casulo; personagens tentando se proteger do mundo e de si mesmos.
Mas o triunfo de Sorry, Baby está em sua textura emocional. Eva Victor escreve e interpreta Agnes com uma precisão rara — alguém que ainda tropeça na própria dor, mas que se permite rir de si mesma por tropeçar. É um retrato da cura como processo imperfeito, sem arco conclusivo, sem moral reconfortante. Quando Agnes, no final, segura o bebê da amiga e reconhece no choro daquela nova vida o eco do próprio sofrimento, Victor oferece uma das imagens mais bonitas do cinema recente; a noção de que sobreviver é, às vezes, apenas continuar sendo testemunha — de si, dos outros, do tempo que não para.
Sorry, Baby é o tipo de filme que entende que o trauma não precisa ser o centro da existência, mas que nunca desaparece completamente. É o cinema da ferida que cicatriza torta, da risada que vem na hora errada, do amor que reaparece tímido, mas ainda possível. Uma obra agridoce, sensível e profundamente humana — um lembrete de que, mesmo depois da coisa ruim, o mundo insiste em nos chamar de volta.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 16, 22 e 30 de outubro.
Avaliação - 10/10
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