Por que o povo de Derry esquece as coisas? A psicologia, a metafísica e o horror silencioso de Stephen King

Divulgação | HBO Max

• Por Alisson Santos 

O mistério por trás do esquecimento coletivo em Derry é um dos elementos mais inquietantes do universo criado por Stephen King. Na superfície, parece apenas mais uma característica perturbadora da cidade, mas quanto mais se analisa, mais evidente se torna que o fenômeno é um dos pilares centrais da narrativa de It: A Coisa. Derry não funciona como uma cidade comum; ela age como um organismo vivo, moldado e manipulado pela presença milenar da entidade conhecida como A Coisa. Essa influência faz com que o lugar absorva, reorganize e silencie memórias com a mesma naturalidade com que uma pessoa respira. O esquecimento não surge por acaso; ele é parte da forma como a cidade se autorregula, mantendo-se estável diante do horror que a assombra.

A explicação mais evidente é a interferência direta da Coisa na mente das pessoas. Pennywise não aterroriza apenas por sua aparência ou violência física, mas por sua capacidade de distorcer percepções e manipular emoções. No livro, fica claro que sua influência psíquica cria uma espécie de anestesia na população. As pessoas se tornam menos perceptivas, menos sensíveis, menos reativas. É como se a criatura emitisse um campo que entorpece a consciência coletiva, abafando qualquer memória que possa ameaçar sua permanência. No fundo, o esquecimento é uma defesa — não para os habitantes, mas para o próprio monstro, que precisa do silêncio e da indiferença para continuar existindo.

Mas a amnésia em Derry não é apenas fruto de magia ou dominação supernatural. Stephen King também explora um mecanismo profundamente humano; a negação. Ao enfrentar tragédias constantes, desaparecimentos de crianças, surtos de violência inexplicável e massacres que desafiam qualquer lógica, os moradores da cidade desenvolvem uma espécie de pacto silencioso. É mais fácil virar o rosto do que encarar o horror. Muitos veem, mas escolhem não ver. Muitos entendem, mas decidem não compreender. O trauma coletivo é tão grande que a repressão se torna uma forma de sobrevivência. Em Derry, esquecer vira uma necessidade emocional e social.

Essa dinâmica fica ainda mais evidente quando se analisa o contraste entre crianças e adultos. Enquanto os pequenos conseguem enxergar a Coisa, lembrar dos acontecimentos e reagir, os adultos mergulham em uma névoa de esquecimento quase automático. Quando o Clube dos Perdedores deixa a cidade, suas lembranças se dissolvem, como se fossem sonhos esquecidos ao amanhecer. Eles só conseguem lembrar plenamente quando retornam a Derry décadas depois. Isso reforça outro tema recorrente de King; crianças enfrentam o medo, enquanto adultos o racionalizam, empurrando para longe tudo o que ameaça sua estabilidade emocional. A Coisa aproveita essa fragilidade, usando o próprio funcionamento psicológico humano como ferramenta para se proteger.

A cidade, enquanto entidade, também contribui para o apagamento. Derry é apresentada como um lugar de poder, um ponto geográfico onde a realidade parece mais maleável. Tragédias históricas, explosões inexplicáveis e ondas de violência são absorvidas pela cidade, que opera como um espaço onde passado, presente e futuro se embaralham em silêncio. A topografia emocional do lugar favorece o esquecimento, como se as memórias fossem engolidas pelo próprio solo.

Por trás de toda essa ficção, há uma crítica social clara. Stephen King usa Derry como metáfora para a forma como comunidades reais lidam com violência, abusos e injustiças. Assim como na cidade fictícia, muitas sociedades preferem esquecer, silenciar e ignorar aquilo que é doloroso demais para ser encarado. Derry é um espelho distorcido da realidade, mas um espelho ainda assim. O esquecimento coletivo é um comentário sobre como o mal se perpetua não apenas pelo que faz, mas pelo que convence as pessoas a não lembrar.

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