Como Stephen King entrelaça seus universos em uma única cosmologia literária?

Divulgação | Stephen King

• Por Alisson Santos 

Poucos autores vivos possuem um universo ficcional tão vasto, complexo e interligado quanto Stephen King. Embora cada obra pareça existir de forma independente — do terror psicológico de O Iluminado ao drama carcerário de Um Sonho de Liberdade, passando pela fantasia épica da série A Torre Negra —, há um segredo que os leitores mais atentos conhecem bem; todas essas histórias, independentemente de gênero, pertencem a um mesmo multiverso cuidadosamente costurado ao longo de mais de cinco décadas de produção literária.

No centro desse multiverso está A Torre Negra, a saga de oito livros que Stephen King considera seu “magnum opus”. A Torre funciona como o pilar de todas as realidades, e seus andares metafóricos sustentam diferentes mundos — inclusive o nosso. É daqui que surgem muitos dos fios invisíveis que conectam personagens, criaturas e eventos espalhados por dezenas de obras.

Roland Deschain, o pistoleiro, viaja não apenas por desertos e cidades arruinadas, mas por realidades paralelas que visitam, cruzam e ecoam acontecimentos de outros livros de King. É em A Torre Negra que o autor revela — sem didatismo, mas com firmeza — que seus universos não são apenas vizinhos; são dependentes uns dos outros.

Nos romances mais “pé no chão”, King cria cidades fictícias que funcionam como epicentros de eventos sobrenaturais. Castle Rock, por exemplo, aparece ou é citada em obras como O Corpo, O Cão Raivoso, A Zona Morta e Conta Comigo. Derry, por sua vez, é palco de It, mas também surge em Insônia, 22/11/63 e até em O Apanhador de Sonhos.

Essas cidades não são apenas cenários recorrentes; elas compartilham uma história comum de tragédias cíclicas, eventos inexplicáveis e até personagens que transitam discretamente entre os livros — como se cada população carregasse um trauma hereditário, herdado de forças que se originam muito além do Maine.

Alguns dos antagonistas mais famosos de King são, na verdade, manifestações diferentes de um mesmo tipo de entidade. Não é coincidência que Pennywise, de It, e a criatura aracnídea de A Tempestade do Século carreguem ecos de um mal primordial chamado Todash — espécie de caos cósmico que transborda do vazio entre os mundos da Torre.

Da mesma forma, personagens aparentemente humanos ganham uma camada extra quando vistos através da cosmologia maior; Randall Flagg, o vilão de A Dança da Morte, é também o “Homem de Preto” da saga A Torre Negra, servindo como avatar do caos em múltiplas histórias, épocas e dimensões.

Um dos elementos mais ousados — e controversos — é o próprio Stephen King se inserir como personagem em A Torre Negra. Longe de um artifício narcisista, essa escolha funciona como uma confissão literária; King não é apenas autor, mas também canal, médium e parte integrante das forças que regem seu multiverso. Os livros, dentro da narrativa, tornam-se registros que preservam a existência da Torre — e, por consequência, todas as realidades.

Em diversas obras, King espalha pequenas pistas que fazem seus leitores mais dedicados procurar conexões quase como arqueólogos; O motel de 1408 tem ecos arquitetônicos semelhantes ao Overlook, de O Iluminado. Charlie, de A Incendiária, é considerada por teóricos como uma “quase-mestra” dos feixes de poder que levam à Torre. O cemitério indígena de O Cemitério tem ligações espirituais com as energias perversas de Derry. Em Doutor Sono, referências sutis a outras obras funcionam como portais simbólicos que ampliam o entendimento do leitor sobre o mundo sobrenatural de King. Essas conexões não funcionam como fanservice gratuito, mas como uma espécie de ecologia literária; tudo cresce junto, tudo respira do mesmo ar narrativo.

Embora King escreva em múltiplos gêneros, seu multiverso obedece a uma lógica muito clara; o mal é cíclico, a inocência é frágil, e o destino de todos os mundos depende da preservação de forças que vão muito além da compreensão humana.

A literatura de Stephen King é como um organismo vivo, um conjunto de histórias que se expandem organicamente, mas sempre retornam ao mesmo centro gravitacional. Esse movimento faz com que cada livro, por mais isolado que pareça, seja parte de uma tapeçaria gigantesca — uma obra coletiva que se estende por décadas e desafia as fronteiras entre o horror, a fantasia e o realismo.

Ao conectar suas obras de maneira tão profunda, King fez mais do que criar histórias assustadoras; ele construiu uma mitologia moderna. Seus leitores, ao longo do tempo, tornam-se exploradores desse mapa metafísico, reconhecendo sinais, correlacionando destinos e descobrindo que nada no universo de King acontece por acaso.

No fim, ler Stephen King é entrar em um labirinto onde cada porta leva a outro livro, outra história, outro mundo — e, eventualmente, à Torre que sustenta tudo. E quando essa percepção se revela, o terror deixa de ser apenas medo; torna-se admiração diante de um autor que transformou sua própria obra em um cosmos literário sem precedentes.

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