Crítica | Família de Aluguel - Triste não porque quer entristecer, mas porque olha para a experiência humana sem ilusões.
| Divulgação | 20th Century Studios |
• Por Alisson Santos
Há filmes que tentam capturar o que é ser humano por meio de grandes gestos, rupturas dramáticas ou discursos inflamados. Família de Aluguel, dirigido por Hikari e protagonizado por um Brendan Fraser em estado de graça, escolhe o caminho oposto; é um filme pequeno, silencioso, quase tímido — mas de uma profundidade emocional que se aloja devagar, até ocupar tudo. Ele fala sobre solidão, sobre o que esperamos uns dos outros e sobre a necessidade básica, talvez a mais antiga de todas; ser visto, reconhecido e validado por outro ser humano. E o faz sem melodrama, sem sentimentalismo preguiçoso, sem recorrer a fáceis choques morais. É justamente essa contenção que o torna devastador.
Phillip Vandarpleog (Brendan Fraser) é um ator americano há anos perdido em Tóquio — não apenas geograficamente, mas emocionalmente. Com a carreira estagnada e conhecido por um comercial grotesco em que interpreta um tubo de pasta de dente, ele aceita um emprego improvável numa pequena empresa japonesa especializada em “alugar” pessoas para interpretar papéis sociais.
A premissa soa absurda, quase distópica, mas o filme a trata com delicadeza e respeito. O “serviço” pode significar desde ser um amigo de ocasião até participar de uma encenação familiar complexa. Clientes criam cenários, situações e ilusões; os funcionários as preenchem com presença, palavra e afeto performado. Phillip começa como um corpo-fantasia — alguém contratado para habitar o espaço vazio da vida de outras pessoas — mas aos poucos descobre que seu trabalho o coloca frente à sua própria falta; ele também está sozinho, também precisa de companhia, também deseja ser importante para alguém. E aqui Fraser encontra o tom perfeito entre a melancolia e o calor humano. Com olhos caídos e postura sempre um pouco curvada para dentro, ele entrega um personagem que parece pedir desculpas apenas por existir — e ainda assim oferece ternura a todos ao redor.
O filme não ignora os conflitos éticos óbvios dessa indústria emocional; mentiras cuidadosamente construídas, crianças envolvidas em fantasias familiares, desconhecidos ocupando papéis sensíveis na vida de pessoas vulneráveis. Mas Hikari escolhe um ponto de vista narrativo interessante; Phillip é um estrangeiro — e, portanto, sua compreensão cultural sempre será parcial.
O dono da empresa, Shinji (Takehiro Hira), e a dedicada funcionária Aiko (a excelente Mari Yamamoto) explicam que ele não poderá entender completamente o significado daquele serviço dentro da sociedade japonesa, onde certos rituais, expectativas sociais e dificuldades de comunicação tornam a solidão mais silenciosa e ao mesmo tempo mais profunda. Essa escolha confere ao filme um gesto de humildade; não cabe ao protagonista — e, portanto, também não cabe ao espectador ocidental — julgar ou “corrigir” aquela realidade. Somos estrangeiros ali, e a narrativa abraça essa perspectiva, sempre cuidadosa, sempre consciente do olhar externo que carrega.
| Divulgação | 20th Century Studios |
O grande dilema do filme emerge quando Phillip, interpretando o papel de pai de uma menina adorável chamada Miya, percebe que atravessou uma fronteira emocional. A mãe da criança contrata o serviço para simular o reencontro com um pai ausente. Phillip sabe que aquilo é moralmente arriscado, mas ainda assim aceita — e logo passa a sentir que não está apenas atuando. Ele está se conectando. Esse é o momento em que Família de Aluguel brilha com mais força; a linha tênue entre interpretação e sentimento verdadeiro é abordada de maneira sensível, nunca manipuladora. Não se trata de enganar o espectador, mas de expor um fato simples e doloroso; às vezes, mesmo quando sabemos que algo é falso, desejamos tanto preencher um vazio que aceitamos a mentira como alívio temporário. E, de repente, aquela mentira vira a única verdade capaz de tocar alguém.
Um dos elementos mais fortes do filme — e que acaba se tornando sua alma inesperada — é a relação entre Phillip e Kikuo Hasegawa (Akira Emoto), um ator idoso contratado para fingir ser entrevistado por um jornalista. Hasegawa vive com o temor de ter sido esquecido pelo mundo; Phillip teme nunca ter tido um lugar nele. Suas conversas, de uma doçura melancólica, revelam o que ambos tentam esconder; todos precisam ser lembrados por alguém, nem que seja por algumas horas de contato eventual. Esse vínculo revela o verdadeiro teor do filme; os trabalhadores da "família de aluguel" não são apenas transmissores de afeto pago — são pessoas tão desamparadas quanto seus clientes. A solidão é a grande niveladora, a ponte que conecta todos ali.
Apesar de visualmente leve e emocionalmente cálido, Família de Aluguel é um filme triste em sua essência. Triste não porque quer entristecer, mas porque olha para a experiência humana sem ilusões; há um número enorme de pessoas que não conseguem formar vínculos significativos sem pagar por eles. Há um incontável conjunto de vidas atravessadas pelo silêncio, pela vergonha, pelo medo de não ser importante para ninguém. Mas a tristeza não paralisante. É a tristeza que prepara terreno para a esperança.
Quando Phillip começa a se importar genuinamente — não como funcionário, mas como ser humano — o filme encontra uma espécie de redenção honesta. Ele mostra que a conexão pode nascer até mesmo num espaço artificial. Que o gesto mais pequeno — um olhar, uma história contada, um abraço improvisado — pode lembrar alguém de que sua existência importa.
Hikari filma com doçura e precisão. O Japão surge como uma mistura de silêncio e cor; ruas estreitas iluminadas por neon, cafés vazios, parques onde o vento parece soprar apenas para deslocar personagens em direção uns aos outros. A direção evita qualquer exotização do país, privilegiando a normalidade, o cotidiano e a intimidade dos espaços. O roteiro, de Stephen Blahut, é direto e econômico. Há sequências que poderiam usar mais desenvolvimento — transições um pouco bruscas, momentos que pediam mais silêncio ou substância — mas nada disso compromete o conjunto. O filme sabe exatamente o que quer comunicar.
O filme estreia no dia 8 de janeiro de 2026 nos cinemas.
Avaliação - 8/10
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