Crítica | Hamnet: A Vida Antes de Hamlet - Um dos filmes mais emocionalmente contundentes da temporada. Um drama sobre luto, maternidade e criação que entende que a arte não nasce do brilho, mas da perda.
| Divulgação | Universal Pictures |
• Por Alisson Santos
Hamnet: A Vida Antes de Hamlet não é um filme interessado em explicar Shakespeare. Tampouco deseja decifrar o mistério do gênio, iluminar o processo criativo ou reafirmar o pedestal quase mitológico sobre o qual o dramaturgo inglês foi colocado ao longo dos séculos. O longa dirigido por Chloé Zhao (em seu retorno mais autoral após a experiência fria e impessoal na Marvel) escolhe um caminho mais íntimo, mais arriscado e, por isso mesmo, mais poderoso; observar o que acontece quando a arte nasce de uma ferida que nunca cicatriza.
Adaptado do romance de Maggie O’Farrell, o filme parte de um conjunto mínimo de fatos históricos — datas, registros de nascimento e morte, lacunas documentais — para construir algo que o cinema faz melhor do que qualquer biografia tradicional; preencher silêncios com emoção. Hamnet, o menino que dá título à obra, vive apenas onze anos. O que o filme se propõe a investigar não é sua curta existência, mas o terremoto emocional que sua ausência provoca.
Desde os primeiros minutos, Zhao deixa claro que esta não é uma cinebiografia convencional. William Shakespeare (Paul Mescal) existe no filme, mas não é o centro gravitacional da narrativa. O verdadeiro eixo é Agnes, interpretada de forma devastadora por Jessie Buckley. A decisão de chamá-la por esse nome — respaldada por registros históricos e por uma revisão contemporânea da figura antes conhecida como Anne Hathaway — não é apenas acadêmica. É simbólica. Agnes não é um apêndice do gênio. Ela é uma força vital própria, uma mulher ancorada na terra, na intuição, na maternidade e nas tradições populares.
O roteiro, coescrito por Zhao e O’Farrell, evita o erro comum de transformar Shakespeare em um oráculo que fala em citações. Os diálogos são secos, econômicos, quase atemporais. Não há esforço em simular o inglês elisabetano como fetiche linguístico. Ao contrário; o texto aposta na universalidade da dor. A perda de um filho não precisa de ornamentos literários para ser compreendida — ela atravessa séculos intacta.
Visualmente, Hamnet rejeita a idealização histórica. O mundo retratado é físico, áspero, orgânico. Há barro nas roupas, unhas sujas, corpos cansados. Zhao abandona qualquer romantização pastoral para se aproximar de um naturalismo sensorial, onde o cotidiano pesa tanto quanto o trauma. Essa escolha reforça a sensação de que o luto não é um evento isolado, mas algo que infiltra cada gesto banal da vida.
| Divulgação | Universal Pictures |
A estrutura narrativa comprime o tempo, aproximando a morte de Hamnet da escrita de Hamlet. Historicamente, essa distância foi maior, mas o filme opta pela verdade emocional em vez da precisão cronológica. Essa compressão tem consequências; Paul Mescal desaparece por longos trechos, e sua ausência cria um desequilíbrio dramático perceptível. Ainda assim, essa lacuna também comunica algo essencial — o afastamento de William não é apenas físico, é emocional. Ele foge para Londres; Agnes permanece com o peso insuportável do vazio.
Jessie Buckley sustenta o filme com uma atuação espetacular. Seu trabalho se apoia em explosões dramáticas, microexpressões, silêncios e olhares que carregam um mundo em colapso. A câmera frequentemente a enquadra de forma íntima, quase claustrofóbica, reforçando a sensação de aprisionamento emocional. Agnes não sabe como seguir em frente — e o filme não oferece respostas fáceis.
Há também um flerte delicado com o folclore e as crenças populares da época, sugerindo uma relação de Agnes com forças invisíveis, com o espiritual e o simbólico. O filme poderia ter explorado mais esse aspecto, mas sua presença sutil funciona como uma camada adicional de sentido, não como distração narrativa.
O grande acerto de Hamnet está em sua recusa em transformar a dor em espetáculo. A cena final, de beleza comedida e profundamente comovente, sintetiza a proposta do filme; não explicar como Hamlet nasceu, mas sugerir que toda grande obra carrega um preço humano. A arte aqui não é redenção completa — é tentativa, é sobrevivência. Ao humanizar Shakespeare, Zhao não o diminui. Pelo contrário; ao mostrá-lo como um homem incapaz de equilibrar ambição e afeto, o filme o torna mais real, mais falho e, paradoxalmente, mais interessante. O mito cede espaço ao homem, e isso é infinitamente mais cinematográfico do que qualquer veneração vazia.
Hamnet: A Vida Antes de Hamlet é um dos filmes mais emocionalmente contundentes da temporada. Um drama sobre luto, maternidade e criação que entende que a arte não nasce do brilho, mas da perda. Um dos melhores filmes que assisti em 2025.
O filme estreia em 15 de janeiro de 2026 nos cinemas.
Avaliação - 9/10
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