Crítica | A Própria Carne - Um terror histórico ambicioso, imperfeito e necessário — um grito abafado no pântano da memória brasileira.
| Divulgação | Nonsense Creations |
• Por Alisson Santos
O cinema de terror brasileiro vive, há anos, uma luta silenciosa contra o próprio esquecimento. A Própria Carne, dirigido por Ian SBF e produzido pelo Jovem Nerd, não é apenas mais uma incursão independente no gênero — é uma tentativa de esculpir medo dentro das ruínas históricas de um país que raramente encara seus próprios fantasmas. Ambientado nos resquícios da Guerra do Paraguai, o longa propõe uma fusão entre o horror psicológico e o horror histórico, um experimento raro e arriscado que tenta transformar a culpa e o trauma nacional em matéria-prima de pavor.
A premissa é simples, três soldados desertores, exaustos e famintos, buscam abrigo em uma fazenda isolada na fronteira. Lá, encontram um fazendeiro de presença enigmática (Luiz Carlos Persy, em atuação hipnótica) e uma jovem misteriosa (Jade Mascarenhas) que parecem guardar segredos mais densos que o próprio breu da noite. A partir desse encontro, o filme mergulha num território de desconfiança e paranoia, onde o medo não nasce apenas do sobrenatural, mas do humano — e das cicatrizes que a guerra imprime no corpo e na mente.
O primeiro grande mérito de A Própria Carne está na atmosfera. Ian SBF e sua equipe entendem que o terror não precisa de sombras digitais ou sustos fáceis, mas de textura e som. O trabalho de ambientação é notável; a fazenda é viva, quase pulsante, como se respirasse junto aos personagens. O som — ou melhor, o silêncio — é usado com inteligência, preenchendo os espaços entre o medo e o remorso. Cada estalo de madeira, cada respiração contida, soa como o prelúdio de uma revelação impossível.
Entretanto, a força sensorial do filme contrasta com sua hesitação narrativa. Quando A Própria Carne se mantém no terreno do terror de sobrevivência, é intenso, sufocante e eficaz — um estudo sobre a culpa e o medo em tempos de desumanização. Mas quando tenta expandir-se para o horror cósmico, evocando ecos lovecraftianos, a coerência se dilui. As forças ocultas que rondam a fazenda nunca se consolidam como símbolo ou ameaça palpável; permanecem como sugestões interrompidas, ideias que tremem no limiar do abismo, mas não saltam. O sobrenatural aqui é mais citado do que vivido.
Essa indecisão é o que dá ao filme tanto sua fragilidade quanto seu fascínio. Ian SBF parece dividido entre dois impulsos; o de fazer um terror filosófico sobre o vazio humano, e o de entregar um horror mais explícito, com gore e explicações. Em muitos momentos, A Própria Carne prefere a exposição onde o silêncio seria mais potente. Explica demais quando o inexplicável já bastaria. E ainda assim, mesmo nesses tropeços, há algo autêntico — um desejo genuíno de provocar desconforto não pela monstruosidade, mas pela memória.
A Guerra do Paraguai, pano de fundo da trama, é um acerto conceitual que merecia mais fôlego. O filme usa o conflito como cenário, mas raramente como espinha moral. O trauma coletivo, a violência contra o corpo e a terra, poderiam dialogar com o título e com o subtexto da carne como símbolo de corrupção, fome e culpa. No entanto, o contexto histórico acaba servindo mais à estética — aos uniformes sujos, à lama e ao isolamento — do que ao argumento. Ainda assim, a simples escolha de ambientar um terror brasileiro nessa ferida esquecida já é um gesto de coragem.
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No centro de tudo, Luiz Carlos Persy oferece uma das atuações mais marcantes do cinema de gênero nacional recente. Seu fazendeiro é um enigma ambulante; voz grave, olhar calmo, presença que mistura sabedoria e ameaça. É nele que o filme encontra seu verdadeiro terror — o medo do homem que acredita ter compreendido o mal e o domestica dentro de casa. Seus monólogos ecoam como sermões apocalípticos, lembrando que a guerra, mesmo quando termina, continua comendo os vivos por dentro.
Visualmente, A Própria Carne tem o vigor dos filmes de baixo orçamento que sabem onde investir. O cenário isolado é explorado ao máximo, com enquadramentos que reforçam a sensação de confinamento e de perda de realidade. Em certo ponto, a fazenda parece existir fora do tempo, como se fosse uma espécie de purgatório terreno. Essa ambiguidade é onde o filme brilha — quando não tenta explicar o terror, mas permitir que ele respire.
O roteiro, no entanto, carece de maior unidade. Há boas ideias — o isolamento, o mistério dos desertores, o peso da carne, escravidão — mas nem todas se fundem em uma totalidade coesa. O terceiro ato se perde entre excessos e pressas, dissolvendo o que poderia ser uma culminância metafísica em algo mais didático e confuso. É como se o filme, ao tentar decifrar seu próprio mistério, acabasse amputando parte de sua força simbólica.
Mesmo assim, A Própria Carne merece ser celebrado. É um filme que existe contra a corrente de um cinema nacional acostumado a fugir do gênero. É imperfeito, sim, mas corajoso — e essa coragem é rara. Ian SBF, vindo de uma trajetória cômica, mostra aqui uma versatilidade surpreendente e um olhar promissor para o horror psicológico. O projeto é um passo ousado para o Jovem Nerd e, espera-se, o início de uma leva de filmes que não tratem o medo como um produto de importação, mas como algo visceralmente brasileiro.
A Própria Carne é sobre aquilo que sobra depois que a guerra termina — os corpos, os silêncios, o que apodrece dentro. É um filme sobre o medo de encarar o próprio reflexo quando o sangue já secou. Poderia ser mais afiado, mais simbólico, mais inteiro. Mas talvez a sua própria incompletude seja parte da mensagem; a carne, afinal, nunca é perfeita. Ela apodrece, se desfaz, se transforma — e é nesse processo de decomposição que o terror encontra a sua verdade.
O filme estreia em 30 de outubro com exclusividade na rede Cinemark.
Avaliação - 7/10
Jovem Nerd 🤮🤮
ResponderExcluirViva o cinema nacional.
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