(MOSTRA SP) Crítica | No Other Choice - É um retrato preciso de um tempo em que a violência se disfarça de pragmatismo e o desespero veste terno e gravata.
| Divulgação | MUBI |
• Por Alisson Santos
Há algo de especialmente cruel e hipnótico em No Other Choice, o novo filme de Park Chan-wook, exibido com grande expectativa na Mostra de São Paulo. O diretor sul-coreano, conhecido por transformar a vingança em poesia macabra, agora volta sua câmera para um tipo diferente de brutalidade; a que nasce do desespero silencioso de quem perde tudo e se vê reduzido a um número no sistema que antes idolatrava. É uma história que começa com uma mentira confortável — a vida perfeita — e termina mergulhada em um abismo de culpa e ruína moral.
Baseado no romance "O Corte", de Donald Westlake, que já havia rendido uma versão dirigida por Costa-Gavras, o filme marca uma releitura radical da ideia de sobrevivência no mundo corporativo. Mansu, vivido com intensidade por Lee Byung-hun, é um gerente exemplar que dedicou 25 anos à mesma fábrica de papel. É o típico funcionário-modelo: fiel, eficiente, orgulhoso de vestir a camisa da empresa. Mas quando investidores estrangeiros compram o negócio e decidem cortar gastos, ele é demitido sem cerimônia. Perde o emprego, o status e o chão — e com isso, perde também o sentido. É nesse vácuo que nasce a sua insanidade; para conseguir a única vaga remanescente, ele começa a eliminar fisicamente os outros candidatos.
A abertura é um retrato sedutor e quase publicitário de uma vida ideal. A casa grande, o jardim, a esposa sorridente, os cachorros felizes. Tudo brilha com a luz artificial de uma propaganda imobiliária. Park filma essa normalidade com ironia, deixando claro que o que virá depois não é uma ruptura repentina, mas a revelação de algo que já estava apodrecendo por dentro. Quando a demissão chega, o colapso não é apenas financeiro, é espiritual. A estabilidade e a dignidade que sustentavam aquele lar eram ilusões que ruem em câmera lenta.
O horror de No Other Choice está em sua banalidade. Mansu não é um assassino em série, nem um gênio do crime. É um homem comum que começa a repetir uma frase — “não há outra escolha” — até que ela se transforme em mantra, justificando o inominável. A frase dá título ao filme e sentido à sua tragédia. Park Chan-wook filma essa queda moral com desconforto visível. A câmera parece constrangida diante dos atos do protagonista, evitando o glamour da violência que caracterizava seus longas anteriores. Aqui, o sangue não é ritualístico, é acidental; o crime não é coreografado, é desajeitado e desesperado. O resultado é uma experiência sufocante, em que a tensão se acumula não pela estética da brutalidade, mas pela incapacidade humana de suportar o fracasso.
Lee Byung-hun entrega uma atuação impressionante, que equilibra o desespero e a apatia com nuances raras. Seu Mansu é trágico não porque comete atrocidades, mas porque acredita piamente que elas são necessárias. Em certos momentos, ele demonstra uma estranha compaixão pelos próprios rivais — uma consciência que torna tudo ainda mais doloroso. Park filma o rosto do ator como um campo de batalha, onde o medo, o orgulho e a culpa disputam cada músculo. Há uma cena particularmente devastadora em que, após um assassinato, Mansu tenta limpar o sangue do chão enquanto escuta música clássica em volume alto, não para se acalmar, mas para abafar o som do próprio choro. É nesse tipo de gesto que Park encontra a humanidade distorcida de seus personagens; não na violência em si, mas no modo como ela nasce da impotência.
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A narrativa, no entanto, não é linear nem rígida. Park insere subtramas que fragmentam o filme; o isolamento da filha, os ciúmes da esposa, o desaparecimento do cachorro, as rachaduras da casa — todas metáforas de uma desintegração emocional. Esses desvios diminuem momentaneamente a tensão principal, mas também ampliam o retrato da ruína. O lar, símbolo de estabilidade e afeto, vai se transformando em cenário de silêncio e desconfiança, um espelho da mente do protagonista. Quando a narrativa volta ao foco principal — a série de assassinatos amadores e trôpegos —, o impacto é ainda mais brutal, porque o espectador entende que não há retorno.
A trilha sonora é uma das ferramentas mais inteligentes do filme. Park alterna composições clássicas com K-pop, sugerindo o contraste entre a tradição e a cultura de consumo que domina a Coreia do Sul moderna. Essa oscilação sonora espelha o próprio colapso do protagonista; entre o que ele acredita ser digno e o que a sociedade realmente valoriza. O resultado é um retrato feroz de um mundo em que até o desespero precisa se adaptar ao ritmo do mercado.
No fundo, No Other Choice é sobre o preço de acreditar demais no trabalho. É um filme sobre o homem que confundiu sua identidade com sua função e, quando foi dispensado, não soube mais quem era. Park Chan-wook transforma esse drama em parábola universal sobre o capitalismo tardio — um sistema que promete sucesso, mas entrega exaustão, que transforma cada ser humano em peça substituível. O que o diretor faz aqui é mostrar o que acontece quando essa engrenagem queima por dentro e o indivíduo, finalmente, tenta sobreviver ao próprio descarte.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 23, 25 e 29 de outubro.
Avaliação - 10/10
Esse eu quero muito ver. Sabe quando chega no Brasil fora da Mostra?
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