Crítica | Querido Trópico - Uma obra que fala de solidão, envelhecimento e maternidade ausente, mas também da estranha comunhão que nasce entre duas mulheres aprisionadas por diferentes formas de dependência.

Divulgação | Filmes do Estação

• Por Alisson Santos

Em Querido Trópico, a diretora panamenha Ana Endara abandona a observação documental para mergulhar em um drama ficcional que carrega, no entanto, toda a sensibilidade e precisão de quem aprendeu a filmar o real com um olhar ético e poético. É o tipo de estreia que não busca deslumbrar pelo virtuosismo técnico, mas pela delicadeza de seus gestos e pela forma como pequenas ações cotidianas revelam mundos inteiros. O resultado é um filme de silêncios, humores e feridas sutis — uma obra que fala de solidão, envelhecimento e maternidade ausente, mas também da estranha comunhão que nasce entre duas mulheres aprisionadas por diferentes formas de dependência.

A trama se desenrola no calor abafado do Panamá, entre ventoinhas que giram preguiçosamente e orquídeas que insistem em florescer sob o peso da umidade. Nesse cenário, conhecemos Mechi (Paulina García), uma matriarca chilena rica e autoritária, agora debilitada por um início de demência, e Ana María (Jenny Navarrete), sua cuidadora colombiana, imigrante ilegal que vive entre o cansaço e a esperança de um futuro regularizado. O encontro entre as duas é de pura colisão social; de um lado, a classe alta decadente que tenta manter aparências; do outro, a servidão feminina como último recurso de sobrevivência. Mas é justamente nesse atrito — entre o poder e a fragilidade — que floresce uma relação improvável e comovente.

Endara filma o declínio mental de Mechi não como um espetáculo de degradação, mas como uma lenta libertação. A cada esquecimento, a cada confusão, a personagem parece se desprender das convenções que a sustentavam. O luxo perde sentido, a etiqueta se dissolve, e o corpo — outrora controlado, contido — se torna o último território de autenticidade. Paulina García, numa atuação soberba, entrega um retrato que oscila entre o cômico e o trágico, entre a dignidade e o ridículo, sem jamais transformar a doença em melodrama. Há algo de profundamente humano em sua Mechi: uma mulher que perde o controle da mente, mas finalmente começa a dizer o que sente.

Do outro lado da relação, Ana María é a expressão de uma maternidade frustrada e deslocada. Sua obsessão com a gravidez — ou com a ideia de uma gravidez — funciona como metáfora do desejo de criar raízes num país que a rejeita. Em suas mãos, o ato de pintar as unhas de Mechi ou preparar uma sopa adquire um peso quase ritualístico, como se cada pequeno cuidado fosse uma tentativa de preencher um vazio existencial. Jenny Navarrete oferece uma performance contida, de olhares e gestos mínimos, mas de enorme densidade emocional.

O filme é atravessado por temas que dialogam com o feminino em suas múltiplas prisões; o corpo que envelhece, o corpo que não gera, o corpo explorado e o corpo esquecido. Ana Endara não recorre ao discurso didático do feminismo — ela o insinua na mise-en-scène, nos enquadramentos que aprisionam as personagens entre janelas, grades, closets e corredores estreitos. O espaço físico torna-se um reflexo da estrutura social que as oprime. É uma mise-en-scène da claustrofobia tropical, onde a umidade é tão opressora quanto o peso das convenções de classe.

Divulgação | Filmes do Estação

O título , Querido Trópico, carrega uma ironia agridoce; o trópico é o cenário paradisíaco que esconde uma hierarquia brutal. A cidade moderna, com seus arranha-céus e condomínios de luxo, surge sempre distante, quase como uma miragem — um símbolo de um progresso que exclui. Endara, vinda do documentário, sabe onde colocar a câmera para expor essas contradições; nas cozinhas, nos quartos abafados, nas mãos que limpam o chão. O Panamá que ela filma é tão belo quanto desigual, e sua câmera observa com empatia, nunca com pena.

A fotografia de Nicolás Wong é um dos pontos altos do filme. A luz parece escorrer pela tela, misturando o dourado do entardecer com o cinza dos dias de chuva, criando uma textura quase tátil de decadência. A montagem de Bertrand Conard adota um ritmo lento e orgânico, que reflete o torpor do clima e o tempo suspenso das personagens — um tempo que não avança, mas se repete, como o zumbido dos insetos ou o girar do ventilador. Esse ritmo pode parecer excessivamente moroso, mas é justamente nele que o filme encontra sua identidade; Querido Trópico é uma obra que pede paciência, que convida o espectador a observar a erosão do cotidiano.

A música quase desaparece, substituída por sons naturais — sinos de vento, o ruído distante das ondas, o murmúrio da chuva — compondo um design sonoro de Carlos García que faz o filme respirar. O silêncio é tão importante quanto as falas, e muitas das emoções mais intensas surgem naquilo que não é dito.

Há momentos de humor involuntário, de ternura absurda, como quando Mechi, em um de seus surtos, espalha geleia de morango pelo rosto, ou quando ambas correm sob a chuva, libertas de qualquer papel social. São cenas de uma inocência quase infantil, nas quais a demência se transforma, paradoxalmente, em um refúgio — um esquecimento que permite a sinceridade. Endara sugere que, talvez, a loucura seja a única forma possível de resistência dentro de uma estrutura que oprime as mulheres pela lógica da utilidade.

No fim, a diretora recusa soluções fáceis. Não há redenção completa, nem ruptura definitiva. O que resta é um elo frágil e sincero entre duas mulheres que, mesmo sem compreender totalmente uma à outra, encontram no convívio a possibilidade de existir fora dos papéis que o mundo lhes impôs. Querido Trópico é, acima de tudo, um filme sobre o poder silencioso do afeto — aquele que nasce entre a lucidez e o esquecimento, entre a servidão e o cuidado.

O filme estreia nos cinemas no dia 13 de novembro.

Avaliação - 7/10

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