(MOSTRA SP) Crítica | Bugonia - Um retrato perversamente atual de uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir o real do delírio.
| Divulgação | Universal Pictures |
• Por Alisson Santos
Em Bugonia, Yorgos Lanthimos abandona a pompa aristocrática e o surrealismo barroco de "Pobres Criaturas" para mergulhar numa paranoia de porão, onde a desinformação e o desespero se misturam como abelhas zumbindo dentro de uma cabeça doente. O que nasce desse experimento é um híbrido insólito entre sátira social, farsa apocalíptica e tragédia psicológica — um retrato perversamente atual de uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir o real do delírio.
A premissa é simples, Teddy (Jesse Plemons, em estado de combustão controlada) acredita que a CEO Michelle Fuller (Emma Stone, soberba e venenosa) é uma alienígena disfarçada que planeja o fim da humanidade. Essa convicção — alimentada por algoritmos e ressentimentos pessoais — o leva a sequestrá-la e iniciar uma espécie de “interrogatório cósmico”, auxiliado pelo primo Don (Aidan Delbis), um inocente funcional, mais vulnerável à fé do que à dúvida.
Mas Lanthimos, fiel à sua lógica do absurdo, transforma essa narrativa conspiratória em um espelho distorcido de nossa própria desordem cognitiva. Em vez de zombar dos crentes ou glorificar a lucidez, ele embaralha tudo; a paranoia de Teddy soa às vezes profética, e a racionalidade de Michelle revela-se tão monstruosa quanto o delírio de seu captor. O horror, aqui, não está nas abduções alienígenas — mas na incapacidade de acreditar em qualquer coisa sem transformar essa crença em violência.
A direção de Lanthimos retoma o minimalismo desconfortável de "Dente Canino", com câmeras que se aproximam demais, enquadramentos que parecem vigiar e um uso inquietante do som — o zumbido constante das abelhas funciona como a trilha mental de uma humanidade que perdeu o foco. Jerskin Fendrix e Johnnie Burn constroem um desenho sonoro que não apenas ilustra, mas corrompe o ambiente; cada ruído é suspeito, cada silêncio parece mentir.
Emma Stone reafirma-se como a musa perfeita desse universo, seu rosto alterna entre o desdém de uma deusa corporativa e o desespero de uma refém que talvez saiba demais. Há nela algo de ambíguo — um brilho não-humano no olhar — que faz o espectador oscilar entre o riso e o pavor. Já Plemons entrega uma performance extraordinária, movendo-se entre o afeto infantil e a fúria homicida com uma precisão assustadora. Seu Teddy não é o vilão; é um produto terminal de uma era em que qualquer verdade pode ser manufaturada com meia dúzia de vídeos e um algoritmo generoso.
| Divulgação | Universal Pictures |
O título Bugonia — termo que designa o mito da geração espontânea das abelhas a partir de carcaças — é a metáfora central do filme. Lanthimos sugere que nossa civilização se tornou exatamente isso; uma colmeia nascida da morte, um organismo coletivo que continua zumbindo enquanto apodrece por dentro. A corporação farmacêutica de Michelle e a comunidade conspiratória online de Teddy são duas faces do mesmo instinto de colmeia; hierárquico, fechado, autodestrutivo.
O humor negro, marca registrada do cineasta, surge não como alívio, mas como veneno. A cena em que Basket Case, do Green Day, embala uma tortura é uma síntese brutal da ironia; rimos, mas o riso tem gosto de sangue. O grotesco se torna catártico, e a insanidade, de certo modo, parece mais coerente do que o mundo que a gerou.
Bugonia não é um filme sobre alienígenas, mas sobre a contaminação da crença. Lanthimos nos pergunta; e se a fé cega em qualquer narrativa — científica, religiosa, corporativa — for apenas outra forma de colmeia, pronta para devorar o próprio mel? O resultado é uma obra profundamente contemporânea, tão divertida quanto devastadora, que reafirma o diretor grego como o cronista mais perverso do absurdo humano.
Ao final, o espectador sai com a incômoda sensação de que talvez Teddy estivesse certo — ou, pior, que todos nós sejamos versões dele, presos em nossas pequenas teorias do mundo, raspando cabeças e fabricando monstros para justificar o vazio.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 17, 19 e 27 de outubro.
Avaliação - 10/10
Só estou esperando a sessão do dia 27 abrir para comprar.
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