(MOSTRA SP) Crítica | Frankenstein - Um gótico sublime sobre a beleza do erro humano.

Divulgação | Netflix

• Por Alisson Santos 

Por mais de dois séculos, a criatura de Mary Shelley tem sido uma espécie de espelho deformado da humanidade — um reflexo pálido e monstruoso daquilo que desejamos controlar, mas não compreendemos. Em Frankenstein, Guillermo del Toro transforma esse espelho em um vitral; atravessado pela luz, pela dor e por um tipo raro de beleza que só o gótico compreende. O resultado é um filme de assombrosa melancolia, um hino à imperfeição que reconcilia o horror com o sagrado.

Del Toro sempre foi um cineasta de monstros e mártires. Do anfíbio enamorado de "A Forma da Água" ao demônio órfão de "O Labirinto do Fauno", ele construiu uma filmografia em que o grotesco é redimido pelo amor. Em Frankenstein, essa sensibilidade atinge o ápice. O diretor mexicano não adapta simplesmente o romance de Shelley — ele o reanima, como o próprio Victor, costurando carne antiga com um novo sopro de alma.

Jacob Elordi, sob pesada maquiagem protética, encarna o Monstro com uma fisicalidade impressionante, mas é em seus olhos — quase sempre emudecidos, famintos de contato — que o filme encontra sua verdade mais pungente. A criatura não é apenas um corpo refeito; é uma consciência despedaçada que aprende, pela dor, o que significa existir. Quando o Monstro se descobre imortal, amaldiçoado a sobreviver ao próprio criador, o espectador percebe o paradoxo central da obra — a morte, antes maldição, é aqui o privilégio que define o humano.

Oscar Isaac constrói um Victor de nuances raras; cientista e místico, órfão e profeta. Há algo profundamente narcísico e trágico em sua performance — um homem que olha para o espelho não para ver a si mesmo, mas para contemplar o vazio de sua alma. Em um dos momentos mais belos do filme, Victor observa o reflexo de sua imagem num grande espelho, como se fosse um falso Pai, Filho e Espírito Santo — uma trindade profana que busca recriar o milagre divino pela força da ciência.

Del Toro o filma como um anjo caído da razão, aprisionado em um laboratório que mais parece uma catedral de ossos e engrenagens. O cineasta transforma o ato científico em ritual litúrgico — fios elétricos se erguem como círios; o trovão é o novo “Fiat Lux”. Em sua ambição, Victor não cria um ser vivo, cria um pecado.

A fotografia de Dan Laustsen é um poema em sombra e cor. Nenhum outro colaborador de Del Toro compreende tão bem a alquimia entre o belo e o terrível. O verde-turquesa domina os laboratórios — cor da decomposição, mas também da esperança —, enquanto os laranjas e vermelhos incandescentes lembram que, mesmo no inverno, o inferno respira sob o gelo.

Há cenas que poderiam estar em pinturas; a criatura carregando uma mulher ensanguentada em meio à neve; o caixão de Claire Frankenstein coberto por rosas carmesim; o reflexo da luz sobre o gelo quando a vida é criada pela eletricidade. São imagens de uma pureza quase pictórica, em que cada plano parece orar pelo mundo.

Divulgação | Netflix

Del Toro reserva o coração do filme para o encontro entre o Monstro e o velho cego (David Bradley). Nessa breve convivência, o horror cede lugar à ternura, e o cinema parece respirar um ar que lembra o neorrealismo — gestos pequenos, diálogos brandos, humanidade pura. É ali, entre livros e silêncios, que o Monstro descobre o mundo — aprende poesia, descobre Adão e Eva, e entende que o conhecimento é uma ferida aberta.

O aprendizado o torna humano demais para o mundo, mas monstruoso demais para o perdão. Quando o velho morre e a criatura é rejeitada, Del Toro não filma uma cena de violência, mas de luto. A raiva do Monstro é um eco do amor que lhe foi negado. E é aí que o filme se torna devastador; o Monstro quer matar o criador, mas o que ele realmente deseja é abraçá-lo.

Mia Goth, como Elizabeth Lavenza, reaparece na filmografia de Del Toro como uma espécie de santa carnal. Sua presença breve, mas magnética, serve de contraponto ao delírio masculino do filme; enquanto Victor deseja possuir a vida, Elizabeth a acolhe. Seu gesto de compaixão para com a criatura — um toque, um olhar, uma palavra — é o único momento em que o filme parece perdoar seus homens. Del Toro, aliás, volta a explorar o feminino como símbolo do equilíbrio entre criação e destruição, entre corpo e espírito. Há em Frankenstein algo profundamente materno — um desejo de devolver à morte o seu direito natural de fechar o ciclo.

A trilha de Alexandre Desplat é quase uma personagem. Oscilando entre o lamento e o delírio, ela recusa o óbvio; ao invés de sublinhar o terror, ela o contradiz. Enquanto Victor remenda cadáveres, ouvimos uma valsa delicada; quando o Monstro caminha sobre o campo de batalha, um tema quase infantil ecoa. Del Toro entende que a beleza não nega o horror — ela o revela.

No desfecho, o filme abraça a fábula de Prometeu — o homem que roubou o fogo dos deuses para iluminar a própria ruína. O Monstro, ao final, compreende que sua existência é o preço da curiosidade humana. E quando diz que “a vida sempre voltará a nascer, como o sol”, Del Toro não fala apenas de esperança — fala de responsabilidade. Criar é, afinal, condenar algo a sofrer.

O fim é amargo e luminoso; Victor e sua criatura se encontram não como inimigos, mas como espelhos. O criador vê no Monstro o reflexo da própria arrogância; o Monstro vê em Victor a confirmação de sua solidão. É o ponto onde ciência, fé e arte se confundem — e onde Del Toro mostra, mais uma vez, que o cinema pode ser um ato de ressurreição.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 16, 18 e 20 de outubro.

Avaliação - 9/10

Comentários

  1. Fabrício Oliveira17/10/25

    Estreia quando na Netflix?

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  2. Anônimo20/10/25

    Crítica incrível! Ansiosa pra assistir

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