(MOSTRA SP) Crítica | Jovens Mães - Em um mundo saturado de ruído e espetáculo, 'Jovens Mães' lembra que o cinema pode ser um gesto de escuta.
| Divulgação | Vitrine Filmes |
• Por Alisson Santos
Há algo de quase milagroso na persistência do olhar dos irmãos Dardenne. Depois de cinco décadas de carreira e dois prêmios Palma de Ouro, os cineastas belgas ainda filmam a vida como se estivessem vendo-a pela primeira vez — com pudor, urgência e uma fé obstinada na possibilidade de redenção. Jovens Mães não é uma reinvenção, tampouco pretende sê-lo; é mais um capítulo nesse evangelho terreno sobre a dignidade dos que vivem à margem. Mas é também um dos mais silenciosos e ternos — talvez o mais compassivo.
Ambientado em Liège, a mesma cidade que moldou o realismo brutal de "O Filho" e "O Garoto de Bicicleta", o novo filme se passa quase inteiramente dentro de um abrigo residencial para adolescentes grávidas. Ali, a câmera dos Dardenne, inquieta mas nunca invasiva, acompanha cinco jovens tentando sobreviver não apenas à maternidade precoce, mas à própria ideia de futuro. Cada uma delas carrega um abismo íntimo; Ariane (Janaina Halloy Fokan), que decide entregar o bebê para adoção; Perla (Lucie Laruelle), que não sabe se ama ou odeia a criança que gerou; Jessica (Babette Verbeek), grávida e faminta por reconciliação com a mãe; Julie (Elsa Houben), aprisionada entre o amor e o vício; e Naima (Samia Hilmi), que vislumbra um raro lampejo de estabilidade com o emprego que a espera fora das paredes do abrigo.
Como sempre, os Dardenne filmam sem anestesia, mas com amor. Não há manipulação, trilha emocional ou discurso social panfletário — apenas o choque entre juventude e responsabilidade, esperança e miséria. As câmeras seguem as meninas de perto, muitas vezes pelas costas, como se quisessem proteger um segredo que nem elas entendem direito. O naturalismo é tão puro que se torna espiritual; cada gesto trivial — um banho dado no bebê, um cigarro fumado à janela, um silêncio entre duas mães — carrega o peso de uma decisão moral.
O roteiro, premiado em Cannes, é uma construção de miniaturas; pequenas histórias que se entrelaçam sem se fundir, como se o abrigo fosse um mosaico de sobrevivências. Não há heroínas. Há, sim, fragmentos de humanidade que resistem. Quando Ariane confronta a mãe, uma mulher que deseja criar o neto como compensação pelos próprios fracassos, o filme alcança um dos diálogos mais dolorosos da carreira dos Dardenne — um retrato nu da maternidade como corrente hereditária de culpa.
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Mas Jovens Mães não é um filme sobre desespero; é sobre o que resta dele. O olhar dos irmãos, agora mais sereno e compassivo do que nunca, encontra beleza na persistência. Há uma espécie de ternura suja, um afeto que não tenta salvar ninguém, apenas acompanhá-los na queda. Quando Naima sorri ao falar de trens — o símbolo do movimento, do ir e vir, do possível — entendemos que, para os Dardenne, a fé é um ato silencioso de resistência.
O elenco, formado em parte por atrizes estreantes, é um milagre coletivo. Janaina Halloy Fokan e Lucie Laruelle impressionam pela contenção, transformando a impotência em algo palpável, humano. Nenhuma lágrima é gratuita; cada gesto nasce do corpo, não do roteiro. Os Dardenne seguem sendo mestres em extrair a verdade das pequenas coisas; um toque hesitante, um olhar desviando, uma palavra que não se diz.
Tecnicamente, o filme continua fiel ao método da dupla; câmera de ombro, luz natural, cortes bruscos que seguem o fluxo da vida. Mas há algo novo na textura das imagens — uma doçura no meio da aspereza. O abrigo, com suas paredes descascadas e sons de berços ao fundo, torna-se um útero coletivo, um espaço onde o amor e a desesperança se confundem.
Ao final, quando as meninas caminham em direções diferentes, não há conclusão nem redenção. Apenas o registro do tempo — o mesmo tempo que devora e, ao mesmo tempo, ensina a suportar. Jovens Mães é um filme sobre a infância que sobrevive à infância, sobre o amor que nasce antes do entendimento. Os Dardenne, fiéis à sua ética, seguem acreditando que todo sofrimento carrega uma semente de bondade — ainda que ela nunca floresça por completo.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 26, 28, 29 e 30 de outubro.
Avaliação - 9/10
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