(MOSTRA SP) Crítica | Sirât - A travessia entre o êxtase e o abismo.

Divulgação | Retrato Filmes

• Por Alisson Santos 

Em Sirât, Oliver Laxe transforma o deserto do Saara em uma catedral de som, poeira e desespero. O que poderia ser apenas mais uma história sobre desaparecimento e luto se converte, sob sua lente, em uma parábola sobre fé, corpo e ruína. É uma jornada física que reverbera como um delírio espiritual.

A premissa é simples, quase bíblica. Um pai (Sergi López) e seu filho (Bruno Núñez) partem em busca da filha desaparecida, atravessando o deserto marroquino até uma rave que promete libertação e transcendência. À medida que os graves da música eletrônica ressoam como batimentos cardíacos cósmicos, o que se revela é uma travessia pelo inferno contemporâneo, um ritual de purgação mascarado de celebração.

O título Sirât não é gratuito. Ele remete à Ponte As-Sirāt, passagem frágil entre o Paraíso e o Inferno no imaginário islâmico, tão fina quanto um fio de cabelo e tão afiada quanto uma lâmina. Laxe transforma essa metáfora em estrutura narrativa; cada quilômetro percorrido é uma prova de fé, cada batida de som uma tentação, e cada vislumbre de luz um prenúncio de queda.

Como em "Mimosas" (2016), o diretor recorre à topografia espiritual do deserto. Mas aqui, a secura do Saara é substituída pelo som úmido e pulsante das raves clandestinas, onde o transe se torna o novo sacramento. A trilha de David Letellier mistura techno e drone com o rugido do vento e o estouro distante de motores, criando uma paisagem sonora que engole o espectador. Na cabine da Mostra de São Paulo, a exibição em Dolby Atmos não foi mero capricho técnico, mas uma exigência espiritual. A música em Sirât não acompanha a ação — ela é a própria ação.

O filme se move entre dois polos; o êxtase e a exaustão. Nos momentos de comunhão coletiva, com corpos se contorcendo sob estrobos e poeira erguida como incenso, há algo de hipnótico e quase sagrado. Mas Laxe, fiel à sua vocação de alquimista do desconforto, logo revela o outro lado da meditação sonora; a barbárie. A rave que prometia libertação degenera em delírio apocalíptico, e a fronteira entre dança e desespero se dissolve. O som vira ruído, e a fé se transforma em febre.

Divulgação | Retrato Filmes

Há ecos de "Mad Max: Estrada da Fúria" nas perseguições pelas dunas e de "O Salário do Medo" nos trajetos precários que desafiam o acaso e a gravidade. Mas Laxe não está interessado no heroísmo. Ele busca o instante em que o humano colide com o sublime e o sublime se torna monstruoso. Quando o pai e o filho se veem incorporados à caravana de ravers mutilados e sobreviventes, o filme encontra sua imagem mais poderosa; uma comunidade de peregrinos que substituiu a religião pela pulsação de um subwoofer.

Se há falhas em Sirât, elas vêm da própria ambição da obra. Em certos momentos, a intensidade estética sufoca a narrativa. O lirismo se perde no peso da brutalidade, e o som, que deveria libertar, aprisiona. Ainda assim, é justamente nessa tensão que o filme se torna inesquecível. Está no paradoxo entre transcendência e destruição, entre corpo e espírito, entre o que dança e o que morre.

Ao fim, o espectador percebe que a travessia de Laxe não é apenas dos personagens, mas do próprio cinema. Sirât caminha sobre o fio que separa a arte do artifício, o êxtase do esgotamento. E, como a ponte islâmica que o batiza, só quem aceita o risco da queda pode vislumbrar o outro lado. No silêncio final, depois que o som se extingue e o deserto volta a respirar, o que resta é a sensação de ter atravessado algo maior que um filme — um rito. E, como todo rito verdadeiro, Sirât não pede compreensão. Pede rendição.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 16, 22 e 24 de outubro.

Avaliação - 8/10

Comentários