Crítica | The Mastermind - O crime como espelho da mediocridade.

Divulgação | MUBI

• Por Alisson Santos 

Kelly Reichardt nunca faz o filme que esperamos. Em The Mastermind, a diretora americana desmonta o gênero de assalto com a mesma paciência, ironia e compaixão com que há anos examina o fracasso silencioso da vida comum. O que em mãos alheias poderia ser um thriller elegante sobre um roubo de arte transforma-se, aqui, em uma meditação sobre o vazio existencial do homem moderno — um assalto não ao museu, mas à própria ideia de significado.

Ambientado na Nova Inglaterra dos anos 70, o filme acompanha JB (Josh O’Connor, em atuação de rara contenção), um carpinteiro subempregado, pai de dois filhos, filho de um juiz respeitado e de uma mãe que se recusa a enxergar o quanto ele está perdido. JB decide roubar um pequeno museu local — não por necessidade, mas por tédio, por ressentimento, talvez por um desejo confuso de provar que é capaz de algo. O plano é tão desajeitado quanto sua vida; mal preparado, cheio de falhas e sem qualquer glamour. Reichardt o filma não como um gênio criminoso, mas como um homem que tenta dar importância a si mesmo em um mundo que já desistiu de ouvi-lo.

A diretora — fiel à sua estética de silêncios, planos demorados e naturalismo quase documental — evita completamente o suspense tradicional. The Mastermind não quer saber da emoção do roubo, da adrenalina da fuga ou da sedução da ilegalidade. O que lhe interessa é o que acontece depois; o peso do vazio quando o crime não oferece redenção. A ação cede espaço à observação minuciosa de rostos, gestos e espaços, num subúrbio americano que parece anestesiado pelo conformismo.

Josh O’Connor, sempre à beira do colapso emocional, compõe JB com uma vulnerabilidade cômica — um homem que acredita estar se rebelando, mas que apenas repete os mesmos impulsos que critica. Ele quer ser especial, mas só consegue ser mais um. Ao lado dele, Alana Haim surge como Terri, a esposa que observa com crescente frustração o desmoronar daquilo que ainda chama de família; Bill Camp e Hope Davis, como os pais, completam o círculo de moralidade ambígua e hipocrisia doméstica.

Reichardt tece tudo isso com um senso de humor quase imperceptível — um riso que nasce do desconforto. O pai de JB, por exemplo, critica o roubo como “um crime que não vale a pena”, sem saber que o próprio filho é o autor. É uma ironia tipicamente reichardtiana; ninguém vê o outro de verdade. O crime, nesse contexto, é só mais um gesto de invisibilidade.

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Enquanto isso, os Estados Unidos do Vietnã e dos protestos ecoa ao fundo — não como comentário político explícito, mas como ruído distante, um lembrete de que há lutas reais acontecendo fora do pequeno universo de JB. É um detalhe que dá à narrativa uma dimensão moral sutil; o protagonista, perdido em seu egocentrismo, ignora um país em ebulição para dedicar-se a um crime sem propósito. Reichardt sugere, assim, que a mediocridade é também uma forma de alienação política.

Visualmente, o filme é um triunfo. As cores desbotadas — os azuis pálidos, os amarelos institucionais — evocam a América gasta de fotografias esquecidas, enquanto a fotografia granulada dá à história uma textura de lembrança. A trilha jazzística de Rob Mazurek, que serpenteia entre melancolia e improviso, reforça o tom de uma rebeldia que nunca chega a acontecer.

Há momentos de uma beleza triste; o 360° em torno de JB, falsificando um passaporte em um quarto de hotel, resume toda a sua prisão interior — uma volta completa que termina exatamente onde começou, como o próprio personagem. É o tipo de gesto formal que Reichardt domina; uma imagem que diz mais do que qualquer diálogo.

The Mastermind ecoa Movimentos Noturnos (2013), outro filme da diretora sobre idealismo e culpa, mas é ainda mais afiado na forma como desmonta a figura do “anti-herói americano”. JB acredita ser um mestre do crime, mas é apenas um homem comum tentando escapar da irrelevância — e fracassando de modo quase poético. O título do filme, ao final, soa como piada amarga; não há “mastermind” algum, apenas um homem que confunde movimento com propósito.

Kelly Reichardt constrói, assim, um dos filmes mais lúcidos de sua carreira — e talvez o mais cruel. Sua crítica não é ao crime, mas à ilusão de que o ato pode curar o vazio. No fim, o roubo das pinturas é irrelevante; o verdadeiro furto é o da própria vida, desperdiçada entre tentativas de ser algo mais do que o que se é.

O filme estreia em 16 de outubro nos cinemas.

Avaliação - 8/10

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