(MOSTRA SP) Crítica | Drácula de Radu Jude - Feio, chato, vulgar, excessivo, horroroso e brilhante, o filme é um ensaio audiovisual que desafia a paciência e recompensa a reflexão.

Divulgação | RT Features

• Por Alisson Santos 

Há algo de deliciosamente perverso no fato de Drácula, o novo filme de Radu Jude, ser ao mesmo tempo uma sátira sobre a inteligência artificial e um experimento que a utiliza para deformar o próprio cinema. O resultado é uma obra que parece cuspir ironia a cada frame, um épico grotesco e cerebral que se move entre o sublime e o ridículo com a confiança de quem sabe exatamente o que está fazendo — e ao mesmo tempo finge não saber. Durante três horas, Jude ergue uma colagem ensandecida sobre o mito do vampiro e sobre uma civilização que há séculos se alimenta de si mesma. Se a IA é o novo espelho negro no qual o humano se reflete em sua forma mais plástica e degradada, Drácula é esse espelho quebrado — e cada fragmento reflete uma era distinta da exploração, da estética e do desejo.

O filme se apresenta como uma antologia picaresca costurada por um diretor interpretado por Adonis Tanța, que, desesperado após um teste de público desastroso, pede a uma IA que refaça seu longa sobre Vlad, o Empalador. A partir daí, Radu Jude libera o caos; cada segmento é uma variação do mito vampírico, uma paródia, uma blasfêmia, um ensaio filosófico e uma piada pornográfica ao mesmo tempo. Rodado em iPhone e ambientado em uma Transilvânia transformada num parque temático de ruínas culturais, o filme mistura estética barata, citações eruditas e vulgaridade programada. O resultado é um carnaval de referências e contradições, uma ópera da decadência contemporânea em que o cinema continua vivo apenas porque encontrou novas formas de drenar sangue.

Jude nunca foi um diretor interessado em pureza formal. Ele prefere o erro, a cacofonia, o artifício exposto. Em Drácula, esse impulso atinge o paroxismo; há cenas criadas por geradores de imagem instáveis que misturam "Nosferatu" com anúncios de aumento peniano, ou que reencenam o filme de Coppola com corpos distorcidos e órgãos inventados. É grotesco, mas também lucidamente político. O diretor não está fascinado pela tecnologia; ele a usa como espelho sujo. Ao embaralhar Umberto Eco e Britney Spears na mesma respiração, Jude mostra que o colapso cultural já não é ameaça, mas cotidiano. O mundo sempre foi um vampiro — a IA apenas nos ajuda a enxergar seus dentes.

Divulgação | RT Features

Boa parte do público sairá exausta ou irritada, e com razão. Há momentos em que o filme parece feito para repelir o espectador; monólogos intermináveis, piadas sexuais infantis, sequências arrastadas e uma montagem que sabota a própria narrativa. Mas essa autodestruição é o método. Em uma das passagens mais emblemáticas, uma mulher nua grita “Lamba minha boceta, Drácula!” em um teatro decadente. A cena, de vulgaridade evidente, sintetiza a essência do filme; o espetáculo que consome tudo, inclusive o sagrado, para continuar existindo. O vampiro é o artista, o público e o sistema — todos participam do banquete.

Há quem veja em Drácula um exercício de megalomania, um delírio narcisista de um autor que confunde inteligência com ironia. E essa crítica não é injusta. O filme realmente se arrasta em sua autossuficiência intelectual, e há passagens que soam mais como tese de doutorado do que como cinema. Mas negar sua força seria um erro. O cansaço que provoca é proposital. Jude transforma o esgotamento — físico, cultural e histórico — em forma narrativa. A sensação de estar preso em um ciclo de repetição e decadência é justamente o ponto; o vampirismo não é apenas o tema, é a estrutura. Cada nova variação da lenda suga a anterior, até restar apenas ruído e pixel.

No fundo, Drácula é menos sobre inteligência artificial do que sobre o ato de criar em um mundo saturado de imagens mortas. Quando Vlad renasce como CEO de uma empresa de games, explorando funcionários para vender “experiência” aos ricos, o filme revela seu verdadeiro horror; não o monstro mítico, mas o vampiro contemporâneo que transforma tudo — inclusive a arte — em capital. Jude ri de si mesmo enquanto observa o próprio fracasso, um cético que acredita demais, um humanista que já perdeu a fé no humano. Se o mundo está condenado a repetir suas farsas com novos filtros e novas máquinas, Drácula é o último ato de lucidez antes do apagão total.

O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 24, 25 e 28 de outubro.

Avaliação - 7/10

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