| Divulgação | RT Features |
• Por Alisson Santos
Radu Jude volta a mergulhar na lama moral da contemporaneidade em Kontinental ‘25, um filme que não apenas observa o absurdo cotidiano, mas o eleva à condição de diagnóstico social. Depois do caos verborrágico e iconoclasta de "Não Espere Muito do Fim do Mundo", o cineasta romeno reaparece mais contido, mas também mais devastador. Seu novo longa é uma meditação fria sobre a culpa, o privilégio e a lenta corrosão da empatia em uma Europa cada vez mais anestesiada pela lógica neoliberal.
A trama parece simples, Orsolya (Eszter Tompa), uma oficial de justiça na cidade de Cluj, participa do despejo de um homem que, dias depois, tira a própria vida. Esse evento, banal na estatística mas sísmico no íntimo, funciona como um terremoto silencioso que desestrutura a rotina da protagonista. Jude constrói o filme quase todo em diálogos, em longas cenas fixas que lembram mais confissões do que conversas. Orsolya tenta racionalizar o que sente — culpa, vergonha, desespero? —, mas quanto mais fala, mais a linguagem se mostra insuficiente para redimir o imperdoável.
O gesto de despejar alguém não é apenas o cumprimento de uma ordem legal; é o símbolo de uma engrenagem que move o mundo moderno, onde a propriedade tem mais peso que a vida. E é precisamente aí que Kontinental ‘25 encontra sua força moral; ao sugerir que, em sociedades em que o lucro substituiu o valor humano, a culpa é talvez o último indício de que ainda somos capazes de sentir. Orsolya chora, hesita, tenta entender, mas o sistema ao seu redor se encarrega de higienizar a tragédia. A amiga sugere doações automáticas para instituições de caridade; o padre oferece consolo em forma de clichê; e o marido, distante, representa a rotina confortável que a protege do colapso ético.
Há algo quase rosselliniano nessa peregrinação — e não por acaso, "Europa ’51" é uma das inspirações declaradas do filme. Mas se Ingrid Bergman buscava um sentido transcendental para a dor, Eszter Tompa vaga por um território onde Deus já não mora mais. Sua Orsolya é uma figura da modernidade desencantada, uma mulher que só encontra ecos de sua angústia em discursos vazios e encontros casuais. Até o sexo com Fred, um ex-estudante de direito transformado em anarquista de ocasião, parece mais uma tentativa desesperada de sentir algo do que um gesto de desejo.
Jude filma tudo com a crueza que lhe é característica. Com o diretor de fotografia Marius Panduru, ele adota uma câmera quase impessoal, muitas vezes um simples iPhone, captando os diálogos em planos estáticos que lembram vídeos de vigilância. A textura digital dá ao filme uma sensação de presente contínuo — nada aqui parece estilizado ou distante, tudo se passa num agora sufocante, sem a menor possibilidade de catarse. Mesmo os momentos de humor — como o encontro de Orsolya com um cão robô da polícia ou os dinossauros animatrônicos que rugem fora de sincronia em um parque — são apenas ironias do mundo pós-humano, ecos mecânicos de uma civilização que perdeu a própria organicidade.
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A força de Kontinental ‘25 está em seu paradoxo; é um filme radicalmente político e, ao mesmo tempo, profundamente íntimo. Jude não se contenta em acusar o sistema; ele observa, com uma frieza quase científica, o modo como a burocracia se infiltra nas relações humanas, transformando o arrependimento em performance e a solidariedade em algoritmo. Orsolya tenta confessar-se, mas o confessionário é agora um chat, um podcast, um relatório institucional. A humanidade, como o próprio título sugere, tornou-se uma corporação continental, regida por protocolos de gestão emocional.
"Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" era um grito, Kontinental ‘25 é um murmúrio — e, paradoxalmente, mais devastador por isso. Não há escândalo, nem histeria, apenas um silêncio moral que se espalha como ferrugem. O suicídio do despejado é o ponto de partida, mas o verdadeiro tema é o luto por um mundo onde a culpa ainda fazia sentido.
Ao final, o espectador não sabe se Orsolya será “redimida”, e talvez isso nem importe. Jude recusa qualquer arco de transformação. Sua personagem não muda; apenas percebe que já era tarde demais para mudar. O gesto final — uma caminhada sem rumo por um parque povoado de falsos dinossauros — é a síntese perfeita do cinema de Radu Jude; uma arqueologia do presente, em que os fósseis somos nós mesmos.
Com Kontinental ‘25, Radu Jude reafirma-se como o mais lúcido cronista da decomposição europeia — e, talvez, do próprio conceito de civilização. O que resta, depois da culpa, é apenas o reconhecimento de que o vazio venceu. E que, mesmo assim, ainda há beleza em observá-lo com honestidade.
O filme será exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com sessões marcadas para os dias 17, 25, 27 e 29 de outubro.
Avaliação - 9/10
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